Carina Lessa

Enquanto a casa não se organiza: a barca parca

 

– Bandalheiros, bandalheiros, bandalheiros… não há legistas neste local?! – O pombo havia lhe deixado umas manchinhas indesejáveis no paletó empoeirado.

 

Parece que lhe mandaram assumir a palavra num congresso, a temporalidade dos dias dataria de cem anos se assim fosse conveniente aos retardatários. A injúria veio a cavalo velho e não há culpados, de modo que parou à frente dos demais no metrô da Carioca e pôs-se a observar. A trama das vontades lhe caiu bem, não avaliou o espaço, o tempo ou a cidade. Machado refletiu mesmo ser impossível compor o dinamismo da hierarquia social sem se apoderar dos comportamentos. Coisas de casamentos e óbitos são ministérios fartos que manifestam a tensão insolúvel: os grupos têm mesmo de produzir constante intercâmbio entre as desigualdades, mas, observemos, no metrô da carioca os leitores brasileiros leem, contam outras histórias, analisam os dados, rechaçam a história de povo desenxabido, conversa fiada dos comandantes que juram de pé junto que a barriga vazia é sinônimo de preguiça.

A distribuição dos cativos vai mesmo ao sabor das gentes, francamente, ouvido daqui ouvido acolá, já lhe escaparam tantos trocadilhos que em março pode ser que não sobreviva dois quartos da nossa população, quiçá um quarto, vós que me digas.

Diferentemente das livrarias e editoras com seus cheiros de luxo, o sebo da carioca é desorganizado e contrai as pessoas que por ali passam. O vírus não veio com a pandemia, vai ao sabor dos tempos, mon cher. Ao ar livre, não há cheiro de mofo. Do meu lado direito, uma senhora encerra com os sabores à venda, é Ativ Plus na veia depois de descer pelo gargalo a fora ou a dentro. Isso com que pego um fragmento do dia é para descrever o passado dos ratos, poderia ter sido na madrugada de hoje ou há um século. O lixo ainda não varrido da rua me disse algumas conveniências, alguém gritou meu nome, mas não chegou aos vossos ouvidos, ficaram mesmo sentindo o sol vingativo que estou carregando nas costas. A verdade é que isso acontece porque com todo o esforço não perco a batina e a roupa preta é um equívoco para os dias de sol.

Olhei de relance e percebi que o fígado de um homem doía de um jeito meio torto, lançava-o tanto quanto possível aos troféus do acaso. Ficava ali parado entre a possibilidade da gordura e a amabilidade dos percalços apaixonados. Daremos, veja a graça, aos amados filhos da terra a exaltação nobilíssima da decrepitude, as lições diferentes e as promessas de prosperidade. Sêneca nos deu uma importante lição ao falar de educação e estrutura escravagista, mas hoje temos algoritmos pensantes, quem diria?

Encostei na parede do metrô, a leitura do jornal veio nas ideias, a barraca de doces e o burburinho descreveram a experiência de ver-se refletido no vidro da máquina com pessoas atravessadas e em movimento…

– O senhor pode ficar tranquilo? –  disse a voz sonâmbula.

– Me leva a lhe contar quem sou? – respondi com a cabeça.

 

(Imagem disponível em: https://pixabay.com/pt/photos/escada-rolante-escadas-metro-metr%c3%b4-769790/)

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Carina Lessa

É ficcionista, poeta, ensaísta e crítica literária. É graduada em Letras, mestre e doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ. Atua como professora de graduação e pós-graduação nos cursos de Letras e Pedagogia da Unesa. É membro da Associação de Linguística Aplicada do Brasil e da ABRALIC.

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