Carina Lessa

Antonio*

O corpo parecia sempre chegar antes da cabeça, porque ela nunca relutara em se perder. Nos últimos tempos, o traço era mais persistente. Dormia no escritório e parecia falar sozinho.

Antonio, para as pessoas que o cercavam, era desconcertante. Suas ações não se envergonhavam em ser previsíveis. Isto incomodava. Dormia no trabalho, mas elaborava projetos como ninguém.

A secretária já achava estranho. Os burburinhos começaram. Ele ignorava.

Certa vez, fazia muito calor. As gotas de suor não paravam de se esborrachar no papel.

– Ele está desesperado olhando os papéis, agora está sacudindo-os sem parar. Ele está muito estressado, coitadinho! (disse a secretária rindo com dentes silenciosos).

Antonio, em desespero catatônico, encarava a face de dois olhos que estrebuchavam nas partículas do suor. Teve certeza de que alguém o olhava insistentemente.

O expediente acabou. Foi embora.

Sua casa parece engolir palavras. Está sempre a secá-las. Um dia acabam por ficar roxas, e morrem. Antonio está sempre sozinho.

Nesse dia, chegou em casa e se pôs a escrever gritando loucamente:

– Não gosto de canetas!!! O lápis embeleza melhor as palavras. Tornam-nas esgotos. Isto porque nem sequer falo das teclas…

Já rouco continuou:

– Contrariadas, se desfazem. Ou melhor, murcham como flores não nascidas… Hum… rasgo talvez o papel e as desfaço? Pobre tinta! No passado escorregavas faceira pela pena… Sim. Prefiro o grafite. Abriga faces e cores no acinzentado do tempo. Piedade dos que não entendem….

Já na sala, havia abandonado livros, lápis, emoções, loucuras e êxtases. Em frente à TV, dormia inquieto, tremia ninado pelo som da jornalista que não parava de falar.

Antonio acordou quando já eram nove horas. Faltou ao trabalho. Não se importou. Foi a um barzinho da rua.

Um velho, com a barba por fazer, estava lá. Sentado. Sisudo. Segurava um jornal e corriam as palavras. Não incomodou.

Num repente, o susto. Ouvia um ziguezaguear de sussurros. O que seria aquilo? Com mais atenção pôde se perceber… uma baratinha parruda parecia encará-lo. Recusara-se a acreditar. Pegou do copo de chope, e descontraiu o líquido pelo pescoço adentro.

A angústia tripudiava e não cessava de subir e descer o escorregador da cabeça. Que droga! Por que um inseto falaria comigo?

Por fim, a angústia foi rápida demais e acabou por tombar-se no meio da areia. Droga de escorregador! Olhou novamente de um lado a outro, não a avistara. O susto. A pequena baratinha havia se agigantado diante dele bem ali. Ficou estatelado com a respiração presa, estanque.

Foi embora sem pagar a conta.

Alguns minutos depois se encontrava em frente a outro bar. Não chegou a entrar. Olhou e viu que na TV passava o telejornal do meio-dia. De longe, a brancura do jornalista anunciava mais um psicopata do cotidiano.

Antonio contraiu-se em desfalecimento, mas pôde se conter. Ficou rijo. Correu para casa desconfigurando rostos passantes. Já no quarto, a cama tremia, o gosto indigesto transitava gosmas nos lábios. Desmaiou.

Antonio levantou meio perturbado. Foi para o sofá, alucinava. Nos olhos, pessoas balançavam. Abaixavam-se e se levantavam. Depois caiam bêbadas pelo transe do homem.

Dormiu de bruços até o dia seguinte. Torto pelo estofado.

Acordei. Por uns trinta minutos, não me mexia. Também não pensava. De repente, sem saber como, lá estava com a tradicional calça preta e blusa de manga comprida arregaçada.

Na porta do escritório, a minha secretária parecia uma centopeia. Sempre prestativa. Ah! Que seios cetinosos! Lambiam o meu rosto.

Tão exibida! Transpirava um fôlego áspero. Tinha olhos e bocas fictícios dados a mim. Tagarelava tanto… e os seios absorvendo até me irritar.

Descansei.

Respirei um pouco.

Fechei a porta. Ignorei o ruído.

No almoço resolvi caminhar. Encontrei Victor. O que não faz o tempo?

Éramos muito amigos. Excitava-nos na adolescência escrever poemas de amor.

Poemas de amor. Saiam aqueles escritos.

“Como é bom reencontrar gente que aprecia a mesma coisa que nós. Ando meio em depressão”.

Victor ainda tinha olhos expressivos. Antonio queria dizer muito, mas não conseguia. Contentava-o observar as expressões. “Ele fez o que havia prometido, casou-se com as literaturas. E eu? Caso-me todos os dias com minha falta de vergonha na cara”.

As horas passaram desencadeadas, quando se deu conta, era noite. “De fato, não sou capaz de me zangar. Zanga contida. Que escarra a todo segundo na minha cara”.

Anotava tudo que via, mas o trabalho era compacto. Andava compondo arranjos com a literatura do cânone. Algo que desse partida, que perpetuasse a presença do tédio, do desencanto.

Às sete horas da noite, o amigo fora ao banheiro. Aproveitou e foi embora.

Pegou o carro e foi à praia. Na areia, olhava o mar sem percebê-lo. Aconchegava-se no vento arenoso. De repente sentiu escamas cintilantes derramando-se sobre ele. Engasgou-se. “Devo avançar às cegas? Enrijeço. Sinto que os obstáculos só aumentam”.

Decidiu não voltar mais ao escritório.

Subitamente os passos. Conteve o susto.

–   Boa noite, disse uma mulher.

–   Boa Noite, respondeu surpreso.

– Estava absorvendo as ondas. Parecem conter no íntimo uma vibração sonora, cantam uma música nova a todo segundo. Isto me acalma… ela dizia em êxtase.

Antonio abriu um sorriso sincero, embriagando-se com o constante fervor que brotava da inocência da moça. Sem dizer nada, ela envolveu-o com braços furtivos e carinhosos… os dois se amavam.

A mulher aparentava o desejo profundo de ficar ao lado dele. Foi para a casa de Antonio. Com ternura, ele acarinhava cada pedaço da mulher. Depois de penetrá-la a todo minuto, entre gemidos e fricções, perguntava-a se estava gostando. O movimento era leve e intenso. “No olhar dela um misto de tristeza e de pesar, mas era uma tristeza ambígua que carregava dentro de si o gozo e a insatisfação”. Após a pequena morte, ele beijou-a e deitou ao seu lado alisando os cabelos disformes da menina. Dormiu.

Petrificada, ela chorou e a face tomou cores de sangue, ao lado o corpo nu e desprotegido daquele que amou. Agora, lembrava-se de todos os impulsos, de como o seu corpo foi sujo. Jamais teria coragem de contar a ele sobre os esgotos que permeavam o passado e que poderiam voltar no futuro. Sumiu.

__________________________________________________________________

Do outro lado da esquina? Também podia ser. Não sabia ao certo. Mas ele estava ali. Uma animosidade cobria a pele. A armadura de ferro não escondia o olhar interrogador, a não ser pelo reflexo que por vezes entontecia.

Já tinha o visto antes?

Acordei. Por uns trinta minutos, não me mexia. Também não pensava. De repente, sem saber como, lá estava com a tradicional calça preta e blusa de manga comprida arregaçada. O calor. Ah o calor! O suor não parava de escorrer. Caiu uma gota no novo projeto. Fiquei observando e a pequena partícula parecia me encarar, foi então que percebi, ela carregava aquele rosto. O olhar…

No escritório, havia esquecido por um momento da confusão na noite anterior, mas o barulho ensurdecedor da secretária à porta despertou. Saiu.

Entre passantes usuais da Rio Branco, tive a sensação de alguém estar me observando. A angústia permaneceu por uns cinco minutos. Fui firme. Olhava para frente. O pescoço rígido lutava contra a força do olhar que ladeava. Eis que por um desmaio súbito do pescoço me desequilibrei e, assim, pelas circunstâncias do instante, o olhar venceu.

O ferro que entrelaçava cada perna tornava-o meio pateta com os saltinhos ao agilizar os passos. O olhar? Afetado por tamanha alegria, poderia dizer que transparecia o porquinho da Índia que me enamorava na adolescência ao ler certo poeta que acompanhou minha juventude. O olhar não era de felicidade estagnada, perpassava objetos ambulantes que encontrava todos os dias na caminhada, mas eles não o viam.

Só agora percebi… Eu também era um desses objetos.

Já em casa, após o banho, deitado no sofá, passava as horas trocando mecanicamente os canais da televisão. As preocupações com o trabalho já efetivavam a insônia dos justos. Há três dias só dormia pelas cinco da manhã. Bem… afinal sou um homem enobrecido.

Um, dois, três… Um, dois, três…

Fui até o quarto. Um barulho esquisito de pés musicando ensurdecia o ambiente. Um velho livro caiu no chão. O homem… agora vejo melhor. Conversávamos. A casa ficou revirada. Papéis… livros… lápis… loucura… tentação… emoção… êxtase… acho que foram os moinhos de vento.

Rabisquei frases, talvez parágrafos…

Nos papéis haviam palavras, não sabiam o que desejavam ser.

 

Notas

Também podia ser que o vento passasse, mas neste momento eu jamais saberia sobre o devir, por isso me entreguei.

            A vida sempre avisou que afagar não faz parte do dom concedido ao leve piscar de olhos do tempo, por isso os arranhões. Sempre tive atração pelos arranhões. Eles elevam a beleza habitante nos corpos…

            A segurança que conduz a essa atração sempre esteve debruçada no prazer pós-traumático, capaz de desfazer todos os sentimentos desreguladores da boa alma. Digo isso porque a eloquência dos belos momentos só existe a partir do trágico, do mal acontecido.

*Escrito aos 23 anos.

Mostrar mais

Carina Lessa

É ficcionista, poeta, ensaísta e crítica literária. É graduada em Letras, mestre e doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ. Atua como professora de graduação e pós-graduação nos cursos de Letras e Pedagogia da Unesa. É membro da Associação de Linguística Aplicada do Brasil e da ABRALIC.

Artigos relacionados

Botão Voltar ao topo