Cristiano Fretta

É necessário sabotar a rotina.

Lá vem, como sempre acontece todo dia: inquestionável. Ela normalmente surge após o acordar do sono noturno, ou seja, abrimos os olhos depois de horas de suspensão no vazio ou no onírico de alguns intervalos de sonhos e já somos arrebatados pela necessidade de excretarmos gases, líquidos e talvez sólidos, escovarmos os dentes, tomarmos café, olharmos as redes sociais, enfiarmos roupa na máquina, falarmos mal do governo, colocarmos o crachá que nos dá a identidade de pessoas um pouco impassíveis – enfim, as manhãs são gigantescos parafusos a serem encaixados pela chave de fenda das obrigações rotineiras nas mínimas fissuras do nosso tempo livre. É necessário sabotar a rotina.

Já ao abrir dos olhos, a sugestão é evocarmos a nossa infância, de forma a sentir que estamos acordando em alguma casa que não existe mais, os parentes que morreram dormem nos outros quartos da casa, faça silêncio para não acordá-los, ainda é cedo e hoje é domingo, sua vó gosta de dormir até mais tarde. Enquanto estiver escovando os dentes, observe o seu rosto com calma e tenha a convicção de que nada, absolutamente nada impede você de fazer uma maquiagem de Coringa ou de se vestir como o Patati ou o Patatá, a não ser ter acesso aos itens necessários para tal transformação. Enquanto estiver tomando café, olhe para o líquido preto como se dentro da xícara houvesse um mundo submerso em cafeína, onde pequenos peixes se debatem um contra o outro, com os seus corações quase invisíveis à beira de um ataque cardíaco. Vista o crachá como se fosse a corda de uma forca e dirija até o seu trabalho como se estivesse no cockpit de um Boeing 787 e, se você utilizar o ônibus ou qualquer outro tipo de transporte, feche os olhos e imagine que está sobrevoando as Ilhas Canárias em direção à Europa, com um saldo de R$ 25.234.420,45 na conta bancária. No trabalho, o local mais importante é o banheiro, pois ele nada mais é do que uma cabine solitária cujo objetivo principal é proporcionar aos seus usuários divinos minutos de solidão, e enquanto dentro dele estiver, a sugestão é imaginar mais uma vez que você está em alguma casa que não existe mais, agora é hora de dormir, faça silêncio, sua vó já se deitou.

Aliás, talvez você seja a sua própria vó, que já é morta. Então, repetindo, faça silêncio, faça silêncio,  amanhã é domingo e você gosta de dormir até mais tarde.

Você não tem mais rotina, nem chefe, nem precisa colocar crachá, você fez tudo o que poderia fazer. Feche os olhos, respire fundo e se deixe entregar a um sono sem obrigações.

Não há nenhum parafuso acima de você. Apenas durma. Não há por que acordar.

 

Fonte  da  imagem:  https://pixabay.com/pt/photos/tempo-mulher-rosto-rotina-hábito-3306753/

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Cristiano Fretta

Cristiano Fretta é mestre em Letras pela UFRGS, músico, compositor e professor de Literatura e Língua Portuguesa em escolas privadas de Porto Alegre. É autor das obras "Chão de Areia", "Tortos Caminhos", "A luz que entrava pela janela" e "Crônica de um mundo ausente". Também colabora com as revistas digitais Parêntese, do grupo Matinal Jornalismo, Passa Palavra e com o jornal Extra Classe. Nasceu e mora em Porto Alegre

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