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Suplemento Araçá – Vol.02 – nº04 – Out./2022 – Contos: “APROPRIÇÃO INDÉBITA” – Renato Bruno

ISSN: 2764.3751

APROPRIÇÃO INDÉBITA
Renato Bruno[1]

Não parecia ser um dia diferente, em meio àqueles que a família vinha vivendo nos últimos meses. As viagens do marido eram uma constante e estar de novo em Buenos Aires era um alívio para a esposa, depois de ter que ficar a maior parte do tempo sozinha, em Assunção. Quanto ao filho, este não parecia se aborrecer com a arrogância do pai. Já o conhecia e ter estado longe, rodando pela Europa, deu-lhe experiência suficiente para saber se preservar das cenas que aquele senhor, com quase setenta anos, insistia em fazer, mesmo durante a ausência de público – que, geralmente, eram os próprios seguranças.

Buenos Aires tinha se tornado, para os Souza, uma ilha de tranquilidade, da qual, se precisassem, poderiam chegar a São Paulo em menos de 3 horas, usando o Phenom, apelidado pelo marido de “gaivota”. O jato havia sido comprado há cerca um ano, quando uma viúva sul-mato-grossense decidira passar nos cobres tudo o que fizesse lembrar o Brasil e também aquela tapera onde o marido, com mais que o dobro da idade dela, a havia deflorado com a conivência dos próprios pais, que, de vergonha ou arrependimento, saíram às pressas com os outros filhos menores, carregando um bornal e o peso de trinta moedas, somados à memória do choro e dos gritos da filha, que, àquela época, havia acabado de completar 13 anos.

“Fala pra mim, Branco: comprei ou não comprei um jato da porra? Rapaz, eu deito a poltrona, mas não dá nem tempo de cochilar que o Almeida já avisa que tá chegando… Até hoje, eu não acredito no preço que aquela índia me pediu. Se bobear, já torrou o dinheiro e já tá fazendo vida em Miami.”

E ria, ria, sem dar atenção à esposa, que, calada, vinha com o filho no banco de trás da picape 4×4.

Já passava das onze, quando a família fazia esse caminho entre o aeroporto Ezeiza e a casa principal. O marido seguia animado, conversando com Branco, que, além de agradar o patrão, com um ou outro comentário, ou ainda uma gargalhada, certificava-se, de tempos em tempos, de que a equipe de segurança não havia sumido, no retrovisor da picape. O filho, já na casa dos trinta, aceitava a indiferença do pai como uma benção, pois não se animava com aquelas conversas de macho. E se a solidão oprimia a esposa, que vinha ali sofrendo numa espécie de claustrofobia, dentro daquela picape de cabine dupla, o filho, sem olhá-la nos olhos, segurava-lhe a mão.

As luzes da via expressa permitiam que ela o visse, ainda que sob a intermitência avermelhada do mercúrio. Era, então, que ela, reconfortada com aquele gesto, decidia lembrar alguma cena de infância daquele rapaz barbudo, que, agora, com master degree em Cambridge, havia voltado para casa, dizendo querer revê-la, antes de seguir para a Alemanha, na companhia dos seus próprios fantasmas.

“Ela alguma vez ligou para a senhora? Ele não sabe mesmo onde ela está? A senhora não sente falta dela, mãe?”

Ao chegarem, a rotina impunha sempre um certo grau de tensão: Branco parava, esperando o portão do prédio se abrir e, do carro da equipe de segurança, desembarcava um único homem: terno alinhado, um IMBEL IA2 5,56mm em punho e uma pulsação abaixo de 60 batimentos por minuto. Uma vez fechada a garagem, o segurança retornava ao carro e todos passavam a aguardar o telefonema de Branco, dando o “ok”, pois só ele permanecia, à noite, no triplex da família.

A garagem não era grande coisa, afinal, o prédio seguia o estilo Art Nouveau, e era datado de 1950, e, com isso, sem muita preocupação, cumprindo apenas protocolos, Branco deixava a família ao abrigo da blindagem da picape, para, em menos de cinco minutos, voltar e comunicar que poderiam todos descer. Era a rotina imposta, desde o evento que acontecera em Florianópolis, quando a casa principal ficava em São Paulo, e o marido ainda não se via metido em leilões de obras de arte. Na época, o foco estava no trânsito de proteína animal, entre Pedro Juan Caballero, Nova Alvorada e São Paulo.

No entanto, abrindo a porta de entrada do triplex, não houve muito o que fazer, pois a rapidez da ação e a truculência dos golpes sugeriam um profissionalismo do qual Branco só recordava ter visto em seus tempos de Brigada Paraquedista.

Uma vez refeito o silêncio, mãe e filho estavam caídos no chão, no centro da sala. Ele, com o nariz quebrado; ela, com um corte na nuca – sangrando. O marido, agarrado em um golpe que lembrava algum movimento visto em lutas de Judô, estava de ponta cabeça, do outro lado da mesma sala. Branco era o único que permanecia de pé, embora pressionado contra a parede e com meio cano de silenciador dentro da boca.

Diante dele, uma figura masculina, com o rosto protegido por uma máscara, de uso comum em grupos militares de Forças Especiais, conferia o resultado da ação, naquela primeira abordagem, e, uma vez satisfeito, fez a exigência:

– Dê o comando. Libere a equipe…

Branco assumiu para si que morreria naquela noite, e a impotência diante do que lhe parecia ser inevitável o fez titubear, buscando, com os olhos, alguma forma de diálogo, algum alento para aquela emoção, que há tempos não sentia, e começava a lhe sufocar o raciocínio.

A figura, percebendo essa atitude, retirou-lhe do bolso do paletó o telefone celular e o repassou para um outro homem, que estava ao seu lado, e este, como se o aparelho lhe pertencesse, destravou a tela, com a ajuda do que parecia ser também um telefone. Em instantes, o som, indicando a chamada, preencheu o recinto. Para Branco, aquela rapidez e facilidade só fez aumentar a tensão e qual não foi a sua surpresa, quando ouviu a palavra-chave, dita no timbre da sua própria voz, ecoando pelos quatro cantos da sala e sendo respondida, de imediato, pelo chefe da equipe, que aguardava na rua em frente do prédio:

– Rio.

– Janeiro.

Ao ouvir o acionamento do motor da picape, do lado de fora, e o deslocamento da equipe, ao longo da rua, Branco baixou os olhos, apagando-se lentamente, enquanto mãe e filho, assistindo à cena, sentiram de imediato um vazio no estômago e um arrepio pelo corpo. Para eles, o fim havia se materializado na figura de um homem, que, mascarado, sabiam ser negro, alto, de porte atlético e com um ótimo gosto para ternos.

– Mas que porra é essa? Quem mandou vocês aqui?, disse o marido, meio zonzo, levantando-se com dificuldade, no canto da sala.

– Sente-se. Já vamos conversar…

Indicando o sofá com a mão, o homem sugeriu que o filho também ajudasse a mãe a se sentar e, logo em seguida, um dos capangas, que também tinha a face protegida por máscara, aproximou-se, para, primeiro, tampar-lhes a boca com uma fita e, depois, atar os pulsos.

Fingindo não dar atenção àquilo ou ao homem armado que lhe impunha uma certa distância, frente ao líder da ação, o marido aprumou o corpo e quis assumir o controle do que ainda lhe escapava ao entendimento:

– O que vocês querem? Eu posso pagar o dobro do que te ofereceram… Tá me ouvindo?

Voltando-se para observar a acomodação de Branco em uma cadeira, após ser revistado, os olhos do homem transmitiram para o segurança da família uma sinceridade, que, por força de ofício, Branco aprendera a recusar, mas que lhe agradou, pois reforçava a compreensão dele de que não estaria lidando com animais – ou principiantes. “Fique tranquilo. Não estou aqui para machucar ninguém. Só quero reaver alguns itens.”

Dirigindo-se ao bar, no outro canto da sala, e servindo-se de uma garrafa de whisky – “O meu é sem gelo!” –, o homem volta, depois de beber o que queria, para falar com o marido, estendendo-lhe o copo com uma dose generosa e o olhando nos olhos. Assistindo àquele encontro, mãe e filho não deixaram de admirar, ainda que tensos, a brutalidade do marido, diante de uma situação tão adversa como aquela. Quem o visse virar a dose, como ele tinha virado, imaginaria que ali, naquele copo, estaria a cura para alguma doença grave, alguma fonte de vida, capaz de prolongar-lhe os minutos na face da terra.

– E então? Pronto para negociar? – disse o marido, encarando o homem, enquanto oferecia o copo vazio ao capanga, que, simplesmente, ignorou o gesto e manteve-se em prontidão.

– Claro. Eu quero o lote de quadros que você recebeu ontem. Nº 789652-99.

Surpreso e com a boca semiaberta, os olhos do marido procuraram os de Branco, que estava com a cabeça abaixada, ciente do que era melhor a fazer.

– O que eu quero, especificamente, são os dois quadros de Ismael Nery e os outros três de Alfredo Volpi. Os demais você pode ficar. São falsos.

– Como assim? Você tá maluco? Você é preto! E brasileiro, que eu tô vendo! O quê que você entende de arte?

– Muito mais que você. E acrescento: não se envolva no ataque contra o Malba, pensando que vai pôr as mãos no Uirapuru, de Tarsila. Aquilo vai ser o seu fim…

Para o filho, aquilo foi um choque, pois uma coisa era saber que o pai era um traficante, um contrabandista, um sonegador da Receita, com gente nas suas fazendas vivendo na mais pura escravidão; outra, era conceber aquela ousadia do pai, ao se meter no contrabando de obras de arte e planejar um ataque ao museu com maior acervo de quadros latino-americanos, na América do Sul. Onde é que o Seu Souza estava com a cabeça? “Puta que o pariu! Pra quê que eu fui voltar pra essa merda?” – pensou o filho.

Não se dando por vencido, o homem de família fala para o outro, mascarado:

– Não sei do que você tá falando? Que ataque a museu?

– Eu só quero os dois, de Ismael Nery, e os três do Volpi…

– O quê que é? Vai fazer uma exposição da Semana de 22 na favela?

Se a máscara não atrapalhasse a visão, o marido veria que o homem havia acabado de passar a língua nos lábios…

– Alfredo Volpi não participou da Semana de 22… ele se revelou em uma geração posterior

– Mas poderia. Não participou porque era pobre e não havia espaço para ele, no meio daquela gente, que vivia rodando pela Europa. Ele foi naquela exposição da Anita Malfatti. Não sabia, não? – conclui, com cara de deboche.

– Sabia… – responde o homem, com a voz demonstrando enfado – Vamos lá. Vamos até o outro apartamento, onde você colocou o lote, pois precisamos finalizar isso.

Nesse momento, aos olhos do filho, o sorriso que se abriu no rosto do pai apresentou-se como um sinal de loucura e essa pareceu ser a melhor resposta para justificar o atrevimento dele e também as notícias das quais vinha se dando conta, ali sentado no sofá da sala.

– Não tá lá… e é melhor negociar comigo. Eu pago o dobro do que te pagaram. Aliás, eu pago o triplo para qualquer um aqui! Entenderam? Bora! Quem quer dinheiro?!? – e riu da própria piada, achando que, assim, descontrairia a tensão que preenchia aquele ambiente.

Ao notar que Branco, mesmo de cabeça baixa, comprimia os lábios e a balançava, em sinal de reprovação, o marido se deu conta do silêncio na sala e dos olhos fixos por trás das máscaras daqueles homens que estavam mais próximos dele. Os olhos do líder, que estava bem à sua frente, foram os que mais o incomodaram. Talvez, o marido tivesse sentido vergonha, naquele momento, mas não teve tempo para entender o que sentia. A esposa foi agarrada e o filho, ao tentar impedir, foi jogado ao chão, recebendo, de imediato, alguns chutes nas costelas. E logo se ouviu, na sala, a sequência de urros abafados que aquela mulher deu, ao lhe estocarem três vezes o rim direito, com a coronha de um fuzil de assalto. Aquilo acirrou ainda mais o senso de urgência do marido e do filho – mas, enquanto este buscava vencer o choque e pensar em alguma solução; aquele decidiu dobrar a aposta em si mesmo.

– Ismael foi um maldito. Você sabe… Ele nem conseguia vender os quadros que pintava… E, olha, eu te dou o dinheiro, no valor dos dois quadros. Não precisa levá-los. Vamos conversar…

Quando moveram a cabeça para olhar bem para o rosto daquele homem que acabara de dizer aquilo que foi dito, mãe e filho, ao chão, pareceram ser movidos pelo mesmo fio de nylon, como se fossem bonecos que simulam a vida. No rosto deles, a dor deu lugar ao desprezo e a raiva, mas o marido não viu isso. Estava consumido em uma luta contra gigantes…

– Inclusive, não são os quadros mais famosos dele… e eu não vou ficar com eles. Eles vão para a Europa. Lá, sim, tem público, entende…

– Não. Me explica.

– Olha. Ninguém vai a museu, no Brasil. Você não viu o que fizeram no Museu Nacional? Aquilo tudo pegou fogo. Não tinha bombeiro. Não tinha sistema de incêndio. Não tinha nada. Não tem cabimento deixar esses quadros no país… Poxa, rapaz… Fiquei tão feliz, quando o Museu de Nova York comprou o “A Lua”. Pow…! Lá sim o quadro vai ser valorizado! Entendeu? Tem público! Palco do mundo! Coisa grande…

– Você, então, está pensando no bem das obras…? É isso?

– E não estou? Você é negro e eu vejo, agora, que você tem conhecimento. E você teve que sair do seu lugar. Conseguir algo melhor. O Brasil não tem futuro. Não adianta. Quem ficar preso ali acaba… morrendo… definhando…

– E por que você está interessado, justamente, nesses quadros da Semana de 22? Não é pelo centenário? Não é pelo valor de mercado?

– Nããão… você não tá me entendendo…

– Você quis se envolver com o “Uirapuru”. O maior… E que está em um museu importantíssimo, aqui, em Buenos Aires… Por que tirá-lo daqui? Por que se enfiar numa dessas, com gente de fora, Souza? Gente que você mal conhece…

– Você não entendeu? Europa!! Berço do mundo!! Lá, sim, tem cultura… Pra quê que essa merda vai ficar aqui escondida?

– Souza, os quadros do Ismael e do Volpi, você queria vender para o Sr. Chin Ton Long, um novo magnata chinês, envolvido com o setor de aviação, que tem em vista, agora, entrar no mercado europeu, e ele vai especular com esses quadros, como especula com a venda de carvão e de minério de ferro, no Brasil e em Angola. Esse maior, o “Uirapuru”, o homem que te procurou e sugeriu que você adquirisse uma cota no ataque e na venda, é belga e é um problema antigo para a polícia e para gente também. Agora, você, Souza. Você não passa de um traficantezinho de merda que não soube parar quando devia. Que tem medo de envelhecer, sabendo que não tem vínculo nenhum ao redor de si. E que agora inventou uma novidade, querendo limpar o nome, reinventar o passado. Você é o que é. E o seu tempo para tentar mudar alguma coisa já passou. Esse é o seu legado. Ponto final – Souza só teve tempo de olhar a esposa e o filho, antes de receber um tiro no meio da testa.

Com isso, Branco se encolheu na cadeira e já imaginava o que viria a seguir, naquela noite; mãe e filho, pegos de surpresa, sentiram o estômago revirar e a cabeça, imediatamente, começar a doer, assustados não só com o tiro, ainda que silenciado, e com aquela emoção repentina nos olhos de Souza, mas sobretudo com o som daquele corpo caindo no chão daquela forma. A saliva e a náusea estavam em ambos, em abundância – eram mãe e filho, de novo. Mãe e filho, feridos como antes, como costumava ser…

Do chão, ambos foram postos no sofá, com delicadeza.

– Nós vamos encontrar os quadros e a senhora terá que fazer uma contribuição com a venda de algumas coisas, que este senhor vai lhe explicar. Depois que tudo estiver finalizado, vocês dois estarão liberados e continuarão com uma ótima condição financeira. Não temos interesse nenhum em matá-los. No entanto, essas operações levam algum tempo. Alguns dias; às vezes, semanas. Por isso, peço que mantenham a calma e que a senhora atenda as orientações que vão ser passadas. Ok? Depois disso, não procurem a polícia nem façam barulho. Este dia ficará como um assalto comum. Um episódio do passado. Ok? Entendido? Obrigado, senhora.

– Eu sei onde estão! – disse, finalmente, Branco – Só me deixa viver! Só isso!

– Ótimo! Tem a minha palavra! – e dirigindo-se para outro homem, completou – Verifique a necessidade deles e prepare o transporte. A gente se encontra na fazenda, às seis horas.

Com voz amistosa e alheio ao corpo, caído no chão da sala, dirige-se a Branco, que já estava sendo posto de pé:

– Agradeço muito a sua cooperação. Vamos lá?!

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[1] É professor de Língua Portuguesa, na rede pública municipal de Niterói-RJ. Com especialização em Estudos Literários e mestrado em Letras, interessa-se por Literatura, Cinema e séries de TV.

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