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Suplemento Araçá – Vol.02 – nº04 – Out./2022 – Artigos & Ensaios: “CAMINHOS DE CECÍLIA MEIRELES: BREVÍSSIMO OLHAR SOBRE O MODERNO EM ÉPOCA DE MODERNISMOS” – Carina Lessa

ISSN: 2764.3751

CAMINHOS DE CECÍLIA MEIRELES: BREVÍSSIMO OLHAR SOBRE O MODERNO EM ÉPOCA DE MODERNISMOS
Carina Lessa[1]

            Todas as negações. Todas as negativas.

Ódio? Amor? Ele? Tu? Sim? Não? Riso? Lamento?

– Nenhum mais. Ninguém mais. Nada mais. Nunca mais…

(Cecília Meireles – 1923)

 

Em 1905, no auge dos seus oito anos, Lourenço Filho põe O Pião para girar. Redator daquele jornal irá atuar na futura impressa de São Paulo ao lado de nomes como Monteiro Lobato. Enquanto isso, Cecília Meireles dava os passos iniciais sob a perda da mãe (professora da rede pública do Ensino Fundamental) no Rio de Janeiro. Cinco anos mais tarde, a pequena irá receber de Olavo Bilac a distinção da Medalha de Ouro pelo excelente desempenho como aluna na Escola Municipal Estácio de Sá.

Guardadas as polêmicas em torno de Lourenço Filho, a cargo de evidente colaboração com o governo Vargas, a obra do pedagogista nasce paulista e ganha o Brasil em travessia com o modernismo numa inclinação que abarcará Cecília no “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova” (1932). A professora, sob a tese O espírito vitorioso, encarnará a alma da escola moderna em estímulo à inteligência e à experimentação. Ganhamos com a escola pública, laica e gratuita, sem discriminação de classes, apesar de regime político e padronizado, hoje, questionável em termos de práticas esfaceladas em seu caráter original e democrático. O desenvolvimento integral e individual do ser humano, idealizado por parte dos assinantes, revelou foros de maioridade autoritária – não menos sintomático é o olhar travestido das saias de chita que os modernistas vestiram na história sempre sisuda.

Deixemos o pulo do gato…

Com quatro livros publicados antes da década de 30, restou à Cecília Meireles se enquadrar na segunda fase modernista para “ganhar” o status quo histórico, respondendo às ansiedades intimistas e simbolistas, na medida em que, antes, a ruptura ficava por conta dos arroubos técnicos e parnasianos (se pensarmos a partir de Oswald) ou pela recusa da própria poeta que, segundo o organizador da obra completa da autora, Antonio Carlos Secchin[2], teria apenas validado sua produção a partir de 1939, quando da publicação de Viagem. Ressaltemos o trabalho vigoroso do pesquisador ao nos reapresentar a Espectros (1919), sem reedição desde a data de estreia.

A orfandade e a evasão são caracteres presentes na obra da autora desde o livro de estreia, destaque relevante da fala de Miguel Sanches Neto em ensaio que compõe a Poesia completa, publicada em 2001. “Incorruptível nas lides humanas” (p. 26), como acentua o escritor, o poeta germina modelos e mitos contra a mediocridade da história, nos quais heróis e anti-heróis estariam a serviço da solitária escritora. A temporalidade interior já é projeto nos corpos de Nero, Jesus, Joana d’Arc, dentre outros, que, podemos dizer como exemplo, refletem a fase madura dos personagens de Poemas escritos na Índia, como veremos brevemente. A autonomia, desde o início, será uma sofisticação que não se enclausura em quaisquer escolas: do parnasianismo ao surrealismo, salvaram-se todos.

Seis anos depois da independência da Índia, em 1953, Cecília Meireles já se lançava em diálogo acolhedor com a pluralidade linguística e cultural do país asiático coroado pela publicação de Poemas escritos na índia. “O Mahatma” é verso-coro em 12 dísticos, “De dentro da morte falando vivo”, como declara fragmento do poema intitulado pelo nome do líder político e religioso. Apóstolos de si mesmos, os doze versos compõem o todo cultural indiano revelado pela composição semântica do poeta: Mahatma e seus doze profetas.

Sigamos com o poema “Rosa do deserto”:

Eu vi a rosa do deserto

ainda de estrelas orvalhadas:

era a alvorada.

 

Por mais que parecesse perto,

não vinha daqueles lugares

de céus e mares.

 

Os aéreos muros do dia

punham diamantes na paisagem:

clara miragem.

 

E a voz dos Profetas batia

contra imensas portas de vento

seu chamamento.

 

Reis-touros e deusas-hienas

brandiam seus perfis de outrora

à ardente aurora.

 

Trágicas e divinas cenas

ali jaziam soterradas,

sem madrugadas.

 

Eu vi a rosa do deserto:

a exata rosa, a ígnea medida

da humana vida.

 

Eu vi o mundo recoberto

pela manhã de claridade

da incandescente eternidade.

 

No híndi não há regra sobre formação de gênero, muitas vezes, palavras terminadas em “a” passam a “e” e revelam a constituição do masculino. Ressalte-se que também não há o recurso ao uso de artigos definidos ou indefinidos e, ainda, que, afeiçoado ao latim, compõe-se sintaticamente em sujeito / objeto / verbo[3]. “E a voz dos Profetas batia” ecoará batida toante em rimas internas para além do “dia” anterior: brandiam, jaziam… “a voz dos Profetas[4]” transitaria semanticamente entre o lugar do sujeito e do objeto?

A flor resistente, resultado da acumulação de gesso, reverbera a(a) altura do poeta. O poema, composto por oito tercetos, cadencia a rima toante sempre nos primeiros versos das estrofes – primeiro e quarto versos; sétimo e décimo versos; décimo terceiro e décimo sexto versos; décimo nono e vigésimo segundo versos. A rima soante nos segundo e terceiro versos de cada estrofe. Ressaltemos ainda o equilíbrio na composição de oito estrofes com vinte quatro versos compostos pela alternância métrica de dois versos com oito sílabas métricas e um com quatro sílabas métricas. Interessante é pensar no hinduísmo, malgrado toda a complexidade política e ideológica, como demarcado pelo número três visual, que tem o “Aum” como som primordial concatenando um sistema diferenciado de crenças e culturas – sem a dominação de um único livro sagrado.

A modernista de segunda fase, com esse livro publicado em década de terceira, reflete um olhar moderno no século XXI. Em tempos de pandemia, a Índia proeminente desde o início do novo milênio perfaz os passos anuviados do poeta – seja política ou culturalmente. Lembremos que ainda é muito tênue a antropofagia de outros continentes que não o Europeu, ganham corpo as africanidades e latinidades da América. Segundo lugar no mundo em número de casos e mortes pelo Covid-19, o país possui uma dinâmica política, social e cultural ímpar. Enclave físico e metafórico entre armas nucleares e o entorno pluralista e democrático.

A ambivalência enviesada é mote do livro de Cecília e atualiza semanticamente o espaço contemporâneo. A ausência de paz interna, ancorada pelo sucesso regional, não potencializa a expansão política em diversas esferas em função dos impasses com os países vizinhos. A ausência de liderança, motivo de inquietação por parte de pesquisadores sobre políticas externas, ganha fôlego multicultural na linguagem, quase nada explorada por aqui em produções estilísticas e poéticas.

A divagação serve ou não para (re)pensar os modernismos: sem viés contemplativo, sem tachinha de mural de avisos, sem o automatismo de homens treinados para trabalhar.

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Referências:

CHAUVET COELHO, Selma Cotta. “A reforma da escola com manoel bergstrom lourenço filho e as bases de uma nova escola no brasil”. Revista Teias, [S.l.], v. 15, n. 38, p. 18-31, out. 2014. ISSN 1982-0305. Disponível em: <https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistateias/article/view/24464>. Acesso em: 14 fev. 2022.

LEITE, Carlos Willian. “A última entrevista de Cecília Meireles – Revista Bula”»Revista Manchete, edição nº 630, em 16 de maio de 1964. Revista Bula. Consultado em 13 de fevereiro de 2022.

MEIRELES, Cecília. Poesia Completa/Cecília Meireles. Volumes I e II. Org. Antonio Carlos Secchin. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

SECCHIN, Antonio Carlos. Ária de estação. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1973.

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[1] Doutora em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira) pela UFRJ. Professora de graduação e pós-graduação da Unesa nos cursos de Direito, Relações Internacionais, Pedagogia e Letras.

[2] Em apresentação de Poesia completa (Volume I), p. XVIII.

[3] Recurso poético que, curiosamente, será utilizado por Antonio Carlos Secchin em Ária de estação (1973). Como exemplo, versos de “Matemática marinha”: “(…) um polvo / geometria despenteada / uma curva / eles, se perseguindo / um polvo / as asas quebradas conchas”. (p. 19). Estaria, aqui, o moderno leitor de Cecília?

[4] Observemos a caixa-alta que transforma o substantivo comum em próprio ou em símbolo.

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