Cristiano Fretta

O livro e a vida – parte 3: “A Divina Comédia”

Primeiro semestre de faculdade. Eu estava deslumbrado com a quantidade de conhecimento que se escapava de mim. Quanto tempo seria necessário para que eu lesse todos aqueles livros sobre os quais meus professores falavam? Eu ficava em dúvida se era necessário me embrenhar avidamente pelas florestas da teoria ou se eu deveria eu mesmo construir minha floresta por meio de leituras de ficção. Tudo me parecia nebuloso e, ao mesmo tempo, magnífico.

Na disciplina de Leituras Orientadas I foi solicitada a leitura de A Divina Comédia. Eu então fui até um sebo do centro de Porto Alegre e comprei uma surrada edição da ???, que continha apenas o Inferno. O livro, eu bem sabia, não era com o texto original, mas apresentava trechos em prosa que se mesclavam com poesia, além das ilustrações de Doré. Era aquilo que eu precisava. Mais adiante, pensava eu, lerei toda a Divina Comédia, em versos mesmo – confesso que até hoje não cumpri minha promessa.

No feriado de Páscoa, fomos eu, minha mãe, meu pai e minha irmã passar alguns dias na casa de um amigo do meu pai, em São Lourenço do Sul. A casa ficava perto da Lagoa dos Patos. Era possível vê-la brilhando à luz da lua naquelas noites agradáveis. Uma incrível atmosfera simbolista tomava conta de mim quando eu observava aquela visão.

Então eu me deitava no quarto de hóspedes e me punha a ler A Divina Comédia – Inferno. A floresta dos suicidas me impressionou muito: e se aquilo realmente pudesse acontecer e os suicidas fossem obrigados a se transformar em árvores e ficassem toda a eternidade com os olhos vidrados sem poder se mexer? Quantos pecados eu havia cometido na vida? Ou melhor: eu ainda acreditava em pecados? Lua cheia e a lagoa me levavam aos mais diversos desvarios dantescos.

Aquele livro me acompanhou durante todo o feriado. No último dia, um pouco antes de irmos embora, terminei a leitura. Seria impossível não lembrar do último círculo do inferno, gelado e impiedoso. As páginas da brochura seguem a cair da edição, que guardo com carinho na minha estante. E as imagens de Doré continuam vivas em minha memória.

No caminho de volta a Porto Alegre, falei com a minha família um pouco sobre o livro. Aquele foi o último passeio que fiz ao lado do meu pai, que viria a falecer pouco tempo depois.   Ainda bem   que aquele livro era   literatura.

Fonte da imagem: foto do autor.

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Cristiano Fretta

Cristiano Fretta é mestre em Letras pela UFRGS, músico, compositor e professor de Literatura e Língua Portuguesa em escolas privadas de Porto Alegre. É autor das obras "Chão de Areia", "Tortos Caminhos", "A luz que entrava pela janela" e "Crônica de um mundo ausente". Também colabora com as revistas digitais Parêntese, do grupo Matinal Jornalismo, Passa Palavra e com o jornal Extra Classe. Nasceu e mora em Porto Alegre

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