Oswaldo Eurico Rodrigues

Eles não retornaram…

Eles não retornaram

 

Começar a escrever é sempre um desafio. É desbravar um mundo sem nem mesmo uma bússola quando qualquer um é usuário de GPS.  Hoje temos todas as notícias de todos os lugares em todo canto em todos os momentos ao mesmo tempo e, sem tempo, não conseguimos filtrar em que ou quem acreditar. As crenças e as certezas se diluem na celeridade das informações. Até mesmos selecionar os assuntos a abordar é uma odisseia e sem a precisão da seta de Ulisses. Às vezes, penso não conseguirmos vergar o arco no retorno à própria casa. Fiquei tanto tempo sem sequer rabiscar um guardanapo numa conversa entre amigos e familiares numa pizzaria… Vagando entre as pessoas em tormentas de ânimos, em nuvens de ilusão e artifícios nada charmosos a transformar tanta gente em desumanos ao chão, chafurdando na pequenez. Difícil não rastejar. Difícil também resistir aos encantos sedutores a nos prometer incríveis momentos excelentes. E nossos companheiros? A paciência precisa ser elástica a fim de ajudá-los a subir da lama como humanos novamente.

Na realidade, eu gostaria de falar duma expedição sem volta. Dois heróis saem de suas casas munidos de nobreza, coragem, talento, determinação. Suas esposas não os terão de volta. Não houve nenhuma criatura encantada ou desencantada no percurso. Havia apenas os monstros da ganância alimentados pelo desejo desenfreado de mais e mais ganhos a qualquer custo (entenda-se por custo o sacrifício dos outros, de gente humilde, ribeirinhos e população indígena). Eu quero falar da ira, não é da ira divina. É da ira nossa de cada dia. Da minha revolta pelo ocorrido. Até quando vamos ouvir falar de impunidade?

Tenho evitado assistir aos noticiários a fim de não sofrer com tanta desgraça revelada. A sensação de impotência é imensa. Procuro assistir a vídeos sobre viagens e cultura, músicas sagradas e seculares. Fico reconstruindo mundos como borbulhas no caos. De vez em quando, uma dessas bolhas explode longe e se torna realidade (ainda que efêmera). Não sei por que acabei ligando a TV e assistindo a um grande telejornal brasileiro. Fomos informados sobre o desaparecimento do Bruno Pereira e do britânico Dom Philips. Saíram em missão na Amazônia. A afronta dos dois foi querer defender as populações indígenas. Os deuses do garimpo, da pesca clandestina e do desmatamento ficaram possuídos de cólera. Os dois pesquisadores escritores ativistas por uma vida plena não mais deveriam estar entre os mortais. Eles conheceram o Estige amazônico por onde navegaram até serem despidos de existir por um monstro servo de outros monstros pretensamente invulneráveis.

Ficam as perguntas: até quando seremos castigados por fazermos a coisa certa? Até quando ficaremos presos num penhasco com um abutre comendo nosso fígado regenerante? Até quando cavernas continuarão povoadas de observadores de sombras? Quando conseguiremos sair para a luz sem nos queimarmos? Quando o brilho do sol não mais ofuscará nossa visão? Quando aprenderemos a regular a luminosidade num crescendo de dia pleno? As trevas poderiam ser apenas um abrigo para o sono, um momentâneo entre o desligar e religar de energia. Não precisa ser uma sepultura inviolável e consumidora.

Fico pensando nessa criatura assassina confessa do Bruno e do Dom… É apenas uma ferramenta descartável nas mãos de poderosos que não se mostram em todo o seu potencial a fim de não morrermos todos de pavor diante de tanta crueldade. Eles precisam de mortais para se manterem. Eles se alimentam do medo, da ignorância e da ganância de muitos. Esse instrumento enferrujado de matar não conseguiu destruir ideias e nem ideais. Seus mandantes também não. Precisam insistentemente destruírem para manter sua existência podre e fétida.

Phillips e Pereira cessaram de escrever livros e artigos das vivências de tantos indígenas e demais amazônicos do Brasil. Calam-se histórias dum pedaço de mundo capaz de carregar todo o mundo em sua universalidade. Quando ideias e ideais morrem, morre junto pedaços de toda a Humanidade. De ser por isso o nosso manquejar, nossos tombos. E vamos seguindo claudicantes, com uma Atenas surda a nos guiar… Chegamos a Ítaca. Somente Euricleia nos reconhece. Dedicação e trabalho honesto devem ser lentes capazes de nos ajudar a discernir pessoas. E assim uma serva humilde descobriu quem era seu senhor por uma cicatriz.

Bruno e Dom não conseguiram voltar para suas Penélopes. Elas não precisaram tecer e destecer mortalhas para os sogros. Vestiram-se de coragem a despeito da dor e agem em busca de justiça. Seus reinos são o nosso. Seus esposos não puderam matar a horda dilapidadora do patrimônio de todos nós porque não foram criados para matar. Ao contrário, lutaram bravamente pelas vidas de homens e mulheres da grande família humana.

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