Valdeci Santana

Ah anos 80!

Ah anos 80!

Acordei nos idos anos 80.

Meu vizinho, que minha mãe julgava má companhia por usar brinco na orelha, ouve Ultraje a Rigor e esgoelando repete: “inútil, a gente somos inútil”. Minha mãe desliza a enceradeira no vermelhão do nosso chão, enquanto minha irmã, com a franja dos cabelos cobrindo os olhos, gira o botão do nosso televisor Sharp até encontrar o programa da Xou Xuxa, onde tocará Menudos, sua banda preferida, e fica tentando imitar a coreografia da Andrea Sorvetão, sua paquita preferida. Meu irmão aparece com seu “rabo de peixe” nos cabelos estilo Chitãozinho e Xororó. Quer saber da minha mãe onde esta seu Walkam Sony que ele deixou no quarto perto do par de Kichutes e a coleção de bolinhas de gude. Só por implicância, ele gira o botão do televisor para a Tv Manchete, onde está passando os Changeman.

Na calçada, meu pai encera seu Fiat 147 amarelo, enquanto promete a si mesmo comprar um Monza, que está fazendo o maior sucesso. Peço-lhe para não desfazer da manopla de câmbio que ele comprou no posto Esso, com agua borbulhante em seu interior. Sigo calçada adiante disposto a encontrar uma loja da Kodak e então, revelar o filme fotográfico para, com sorte, aproveitar a maioria das fotografias do meu último aniversário. Festança! Com bolo de glacê, Brahma Guaraná, Brahma Limão e Mirinda e sorvete mini-saia à vontade, além é claro, da saia da mesa, feita de papel crepom. O mesmo papel utilizado para embrulhar as balas de coco.

Entrei num Peg Pag levando a caderneta de fiado, onde anotei duas fichas telefônicas e um bocado de balas Chitas e balas dadinho. O orelhão fica de frente a loja Arapuã onde, de tanto aguardar na fila para fazer o DDD para minha avó, decorei o slogan que dizia: “Arapuã, ligadona em você”.

Aproveitei para devolver a fita VHS na locadora, que meu irmão alugou para assistir a Hora do Pesadelo e, antes cuidei de rebobinar a fita, para evitar a multa. Falando em fita, pensei em comprar uma K7 do Ritchie para meu pai, mas, só de imaginá-lo pedindo de tempo em tempo para enfiar uma caneta na fita e rebobinar, para ouvir Menina veneno outra vez, me cansa. Na agência dos correios que fica ao lado do Banco Barmerindus, despachei uma carta que eu mesmo datilografei para o programa “A porta da esperança”, torcendo para ser sorteado e conseguir com que minha mãe conheça seu ídolo, o galã Francisco Cuoco. Mas, acabei esquecendo em casa o envelope com os códigos de barras que juntei da pasta de dente Kolynos, que sortearia uma bicicleta Monareta novinha no programa dos Trapalhões. Fiquei em duvidas se comprava um carnê do baú da Felicidade, um Papa tudo ou uma raspadinha.

Na volta para casa, convido meu melhor amigo para brincarmos de carrinho de rolimã, mas, ele prontamente recusa, pois, está vidrado no seu novo mini game. A família dele é bem rica e moderna, possuem um Opala Diplomata na garagem, tanquinho para lavar roupas, telefone próprio, acreditem, sem fio ainda. Além de rádio despertador, fax, televisor com controle remoto e segundo me disse meu amigo, seu pai pretende comprar seu próprio mimeógrafo, para seus deveres de casa. Meu pai critica estas modernidades, diz que as pessoas estão pensando em luxo demais e se esquecendo da vida. Outro dia, chegou perplexo, só porque descobriu que um amigo tinha comprado um tal de Pager. Um aparelho que permite enviar mensagens de forma eletrônica.

—Daqui uns tempos serão tantos botões, tantos lugares para teclar, que nem precisaremos usar nossas pernas e bocas pra nada. –Dizia ele.

Minha mãe passa um pouco mais de mertiolate no pequeno corte em minha testa, enquanto minha irmã procura a pomada Minancora que usará no rosto depois de passar o Leite de Rosas para as acnes. Na verdade, eu nunca soube de fato para quê exatamente serve tal pomada, já que em casa a usávamos para tudo.

Vou dormir cansado, depois de um dia de intensas brincadeiras e fico me perguntando se no futuro a modernidade irá preservar esta liberdade, ou, assim como teme meu pai, há de nos privar dos detalhes importantes da vida.

Fonte da imagem: https://www.pexels.com/pt-br/foto/foto-de-close-up-de-fitas-cassete-3672313/

Mostrar mais

Valdeci Santana

Escritor. Autor de 4 romances: "As palavras e o homem de bigode quadrado", "A prima Rosa", "Dia vermelho" e "O rei da Grécia" Palestrante, contista e apresentador no programa #Cultura Tv Batatais

Artigos relacionados

Verifique também
Fechar
Botão Voltar ao topo