Carina Lessa

Dies Dominica aut Solis dies

 

(Imagem disponível em: https://pixabay.com/pt/photos/jumentos-paisagem-natureza-animais-714974/)

Você não pode tirar o cavalo da chuva. Para espoliar os infelizes, Mário decidiu manter a amizade com o mundo. Foi assim que construiu uma casa nova. A verdade é que ele estava cansado de brigas familiares, logo, acordou e foi mesmo reformar o jardim. Plantou tudo que podia: árvores frutíferas, rosas, jasmins… Imaginou-se numa pequena cidade e atribuiu toda sorte de cores com vaidade quase aristocrática: o quintal e o interior.

Havemos de entender que a ação humana está aí para sofrê-la, apesar de sujeitos agirem como Mário. Todas as paixões são válidas para desmembrar os vícios da humanidade e o nascimento ilegal é coisa farta no nosso país, quem observa o espetáculo contemporâneo instaura um campo na própria casa e nisso diz tudo sobre o que está a sua volta.

Subiu na carroça e observou que os joelhos estavam vermelhos. Passara quase duas horas no chão pensando sobre como proceder na construção da casa. Lembrou-se aleatoriamente de imagens de dias anteriores, alguns mais próximos, outros tão longínquos quanto o século passado. Olhar os joelhos construiu-lhe as dores, ainda não estava sabendo sobre o corpo prostrado e reflexivo. O próprio coração quase paralisava, não sabia o porquê. Olhou pelo alto do muro e encontrou a ponta da igreja, o enjoo veio, não se sabe se por conta do sol ou das espadas fincadas no peito da virgem. Coisas de infância, esquisitas, que retornam de quando em vez.

– Cale a boca!!

– Cale a boca!!

– Cale a boca!!

O grito roçava-o feito pistola na cabeça, infância perdida. Por isso, Mário queria mesmo um jardim, uma roça limpa para viver. Vivia confessando, ao vigário do seu coração, o desejo de obter uma mesa farta, reunida de parentes imaginários, tão perfeita quanto a santa ceia. Engoliria o arroz à piamontese (coisa de brasileiro mesmo) com brócolis (que dizem americano) e chamaria pessoas à mente de propósito para tagarelar sobre as desventuras do pão que o diabo não amassou.

Um jumento teimoso que comprara para contemplar o jardim lhe apareceu mexeriqueiro. Teria lhe armado uma arapuca? O bicho lhe servia de enfeite, um homem de juízo precisa de animais que o cerquem. “Raça leviana era a do homem mesmo” –  pensava. De corpo sabido, teve vontade de bater nas fuças do, já agora, invasor. “De onde tirei esse animal?” – inquietava-se. Disfarçou e olhou os tomates que começavam a nascer, cismou que arranjara chifres na cabeça e começou a cavar a terra. Ainda não sabia o que mais plantar…

Um canto gregoriano abriu espaço a capella em uníssono com as folhas das árvores dançando até o chão. Mário acenando com a cabeça, sorrindo à socapa, mandando na terra com o machado, exigindo a construção do seu povo universal: as plantas e o cheiro de chuva que alongavam os braços e os trabalhos intermináveis.

Nada o apetecia mais do que o banquinho que colocara na varanda, que construíra antes do resto da casa. Contente com tudo isso, apesar de semear constantemente, espantou os pássaros dos ninhos que já se acomodavam. Em seguida, o reboco imaginado já caia como acontece nas casas de trabalhadores honestos, parecia sempre encomenda da vida vazia. Abanou a cabeça de novo. Vou embora! A decisão veio no momento em que a lembrança da picada de uma cobra lhe invadiu, coisa do diabo da roça antiga… Tudo e nada acontecera em menos de uma hora quando, de mãos atadas, ouvira sobre o adiantamento das contas do mês. Sossegado, vendo as plantas do próprio quintal, imaginou dividir o azeite com a família, pendurar a rede depois de sentar na soleira da porta e beber da velha botica o xarope para a garganta inflamada.

 

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Carina Lessa

É ficcionista, poeta, ensaísta e crítica literária. É graduada em Letras, mestre e doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ. Atua como professora de graduação e pós-graduação nos cursos de Letras e Pedagogia da Unesa. É membro da Associação de Linguística Aplicada do Brasil e da ABRALIC.

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