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Livro: “Dama de Paus”, de Carina Lessa

A poesia de Carina Lessa não busca o confessional ou o discursivo. O eu que fala nos poemas consegue unir a dicção lírica a certo distanciamento da subjetividade, de modo a ampliar o alcance da palavra. Um recurso frequente é o dialogismo, que instaura um interlocutor que pode ser, em última instância, o próprio eu-poético, como em “Levante”: “Engana-te. Garotos gostam de flores. /São os gozos que cortei num membro amigo.” Ou no poema “Véu”: “Menino velho, / Faço tricô / Quando tu partes.”

Há, portanto, certo pudor elegante em não se desnudar para o leitor, ao preço, porém, de alguma obscuridade discursiva. É o caso do poema “Visão de Túndalo”, que provoca de imediato a interrogação sobre quem é (ou foi) ou o que é Túndalo, curiosidade que os versos do poema não abatem. E é também o caso do próprio título do livro, Dama de paus, que certamente não se limita ao prosaísmo da referência à carta de baralho, mas convida à especulação sobre essa identidade forte, se a procedência é o tarô (e se não for?).

Mas não se trata aqui de carência, de incompletude. Esse é o efeito buscado. Uma espécie de salvo conduto para a palavra, descompromissada da tarefa imediatamente comunicativa, como que a situar a poesia no campo do indefinido semântico, aproximado do preceito simbolista de “não nomear o objeto”, mas sem renunciar à historicidade das paixões, que se faz presente, por exemplo, no poema “Faixa de Gaza”, quando o eu-poético assume a dicção do oprimido: “Sinto inverno suave e seco, ele enferruja / Armas. Refugiado, recebo a coruja / Em gritos demográficos extemporâneos. / Ilusão. Negaram-me a terra prometida.”

O discursivo é evitado com o recurso da brevidade. Os poemas (com exceção dos dois primeiros,” Notas” e “Natureza”, na verdade, prosa poética) são curtos, por vezes minimalistas, como no poema “Diplomacia”: “Dois corpos ocupam mesmo lugar /no espaço.” (negação poética do senso comum amparado no saber científico), de modo a travar o fluxo conceitual, renúncia consciente ao didatismo.  A brevidade também sugere ecos cubistas, como no poema “Asas caídas”: Último fio, / Cupins luzentes. / Postes bilíngues / Refletem sombras / Adocicadas”. Quando o eu-poético dá a impressão de oferecer a chave dos sentidos, foge da refe

rencialidade imediata.

O eu poético instaurado parece refugiar-se na aparente gratuidade dos encadeamentos poéticos. O verso, considerado isoladamente, parece submeter-se também a um “regime”, e o modo de conseguir essa redução de “peso” pode ser o cavalgamento, recurso de que o eu-poético faz uso constante, como no poema “Receita de Máscaras”: “Gosto de trabalhar a noite, vivo / a vertigem das horas. Vãos espelhos / nas ruas selam guardiões passivos.” Também aqui há o risco, assumido, do hermetismo, mas a dicção poética de Carina Lessa longe está de buscar afagar a compreensão imediata.

 

Talvez se possa dizer que todos os poemas sejam variações, pois a preocupação com a linguagem atravessa todos eles, mesmo quando parecem tratar de algo que está, enganosamente, fora dos seus domínios, como no início de “Natureza”: “A língua é minha escrava. Sorte mesmo tem quem pode caminhar com ela às escondidas.” Esse caráter metapoemático se manifesta claramente no poema (aparentemente sem título), no qual o eu-poético se dirige ao “Querido amigo”, para dizer: “você me deu coragem de ser eu mesma de muitas formas”, a que se seguem reflexões que juntam referências ao Dicionário Lello e à rede social Facebook. É relevante a quantidade de títulos de poemas que aludem ao mundo da escrita — por exemplo: “Frontispício”, “Verbete”, “Quase Capicua”, “Cópias”, “Cópia Crônica”, “Biógrafo”, “Re)dizer” (aqui há menção explícita a dois poetas de primeira linha: Cecília Meireles e Antonio Carlos Secchin), “Dedicatória” —, estendendo-se para o campo privilegiado da literatura: “Verso pobre”, “O nascimento do poeta”, “Cantiga de Amiga”, “Dom Juan rouba flores”, “Morreu de Macabea”.

Esta Apresentação não tem o pretensioso intuito de servir de guia à fruição da poesia de Carina Lessa, mas representa o emprenho em se aproximar da força de uma voz que não se contenta com o facilitário da poesia apenas confessional ou com o discursivismo conceitual. Assim me parece ser a poesia de Carina Lessa.

Alcmeno Bastos: Professor de Literatura Brasileira dos cursos de graduação e pós-graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Membro da Academia Carioca de Letras, cadeira 37.

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Livraria Travessa: https://www.travessa.com.br/dama-de-paus-1-ed-2021/artigo/a648ceaa-0a11-4b9c-bec9-05ec0a80d084

 

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