Carina Lessa

Rustilo

 

Abri o dicionário aleatoriamente e deixei que ele me guiasse. Rustilo, ele anuncia: gatuno me faz um furo na roupa para ocultar qualquer coisa, não sei bem o quê.

A alegoria tradicional atribuída ao “navegar é preciso” se tornou obsoleta nos mares da internet. Recorro a Adorno quando fala do isolamento e o contradigo: há nisso uma atitude de traição. O gesto pode ser sim condescendente, porque exploratório. Totalmente desenxabido. Vem uma necessidade atômica ou automatizada de assumir o lugar de um observador definido pela mensagem escondida de antemão. Prisão e engajamento são faces da mesma moeda e vão cambaleantes na necessidade excessiva de ensinar. Frustração permanente para quem quer o poder. A mensagem do navegante explora a miséria do mundo e impede que as adversidades sigam seu curso. Gatuno, testemunho o medo auricular, quero distância do terreno de imagens impressas em versões múltiplas dos detentores do conhecimento. As câmeras mentem, projetam em redes aquilo que, pela milésima vez, foram treinados a acreditar. Graças à era da imagem logarítmica, acendo uma vela e me ponho a rezar.

Nada apaga a mensagem contemporânea de que é tarefa dos mortos manter viva a esperança. O falecimento parece mais hospitaleiro do que mil presenças de afetos. Digo isso porque poucos erros me fazem encontrar tanta necessidade de decomposição quanto a rapidez com que se destroça o osso antes mesmo da carne. Não tenho idade avançada e, supostamente, posso me considerar uma sobrevivente (controle ético, talvez). Gostaria mesmo era de encontrar um território cheio de armadilhas e sufocamentos, mas as palavras estão todas retas e bem treinadas, embrulhadinhas em papel celofane, igualzinhas aos trabalhos bem acabados que minha mãe fazia nos primeiros anos da educação escolar. Tentava, insanamente, recortar os pedacinhos coloridos de papel enquanto me dizia que estava tudo errado. Necessidade de método.

Daqui, o furo na roupa e séculos de reprodução. Efeito globalizante de conhecimento cumulativo nas telas da rede em tom professoral, muita verdade para pouca gente viva. Que mundo singular! Ando mesmo é com má vontade em contemplar a violência e as mentes criminosas. O motoqueiro passa a todo instante estourando os tímpanos de qualquer cidadão na vizinhança. A mangueira é rica em frutas maduras e eu não tenho mais o que fazer.

Fonte da imagem: retirada pela autora do texto.

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Carina Lessa

É ficcionista, poeta, ensaísta e crítica literária. É graduada em Letras, mestre e doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ. Atua como professora de graduação e pós-graduação nos cursos de Letras e Pedagogia da Unesa. É membro da Associação de Linguística Aplicada do Brasil e da ABRALIC.

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