João Rodrigues

Minha rotina virtual

Levanto às seis da manhã. Puxo a cortina, abro a janela e olho a rua. As casas estão lá, imóveis, tentando manter o distanciamento exigido pelo último decreto. Uma casa dá um espirro, as outras se encolhem, receosas, temendo vir naquele espirro a variante mais recente, mais violenta, mais letal.

Uma velhinha abre a porta já de máscara… no queixo, escancara a boca longamente. A filha grita: “Entra pra dentro, mãe, olha a covid!” Ela se arrasta resmungando casa adentro.

Vou pra minha sala de aula virtual, ou melhor, pro meu quarto onde trabalhei ontem o dia inteiro (na verdade, já estou nele), fiquei até às 9 da noite preenchendo planilhas e olhando os grupos das escolas e depois dormi a noite toda. Mal, mas dormi.

Antes de o governo decretar mais um lockdown, meu trabalho me impôs isso.

Ligo o lap top, confiro se a bateria do celular está ok e vou preparar meu café, correndo, pois 7 horas está chegando.

Dez pras sete. Corro pra minha sala de aula (quer dizer, pro meu quarto de novo), confiro o plano de aula, abro a pasta das atividades do dia, dou mais uma olhada no grupo da escola e desbloqueio o grupo de estudo.

“Bom dia, galerinha. Sejam bem-vindos! Vamos começar a nossa aula. Coloquem seus nomes  no grupo, pra fazer a chamada” – escrevo cheio de energia.

Aguardo 10 segundos, 20, um minuto… Será que o governo decretou lockdown nos grupos também? Mais alguns minutinhos e surge no alto do celular “alguém está digitando”. Digita e apaga, digita de novo, apaga…

Acaba de chegar uma mensagem do grupo da escola marcando uma reunião. Pouco a pouco os alunos começam a chegar: um, dois, três, quatro… Outra mensagem da outra escola. Um aluno da turma da tarde envia uma atividade atrasada. Outro pergunta se ainda pode enviar a atividade da semana passada. Outro pede a atividade de ontem. A Secretaria pede o consolidado do último diagnóstico. Preciso explicar o conteúdo pros alunos do grupo. Acaba de chegar uma mensagem da Coordenação pedindo pra entrarmos em contato com os alunos faltosos. Alguém pede pra colocar fulano no grupo.

Chamo os alunos pro Meet. Um aparece… dois… quatro. Me divido entre a reunião no Meet e o grupo de estudo via zap. Chegaram mais dois. A vizinha liga um “pancadão” nas alturas. Um menino chora. Um cachorro late. Um casal briga na casa de frente. Um bêbado grita é “campeão!” Na rádio, o locutor interrompe uma música do Amado Batista pra falar do auxílio emergencial. A rua se cala, mas logo um vendedor de peixe passa gritando “Olha o peixe!”… “Cala a boca, abestado!”, grita um morador.

Deu onze horas, finalmente. Ainda tenho que preencher algumas planilhas.

Uma da tarde. Começa tudo de novo. O estresse corre nas veias. A cabeça enche, parece que vai explodir. Até cinco da tarde foi uma eternidade. Desligo o laptop e vou conversar, virtualmente, com um ou outro colega, olho o grupo da família. Vou ver as notícias. Mais de mil mortes nas últimas 24 horas segundo o consórcio tal. Mudo de canal, mas o despertador toca, anunciando uma reunião da escola às 7 da noite. E lá se foi meu fiapo de vida pessoal.

Onze da noite. E durmo ali mesmo na sala de aula – quer dizer, no meu quarto. Seis da manhã, acordo já no meu quarto, ou terá sido na sala de aula? Nem sei mais.

Esta rotina tá me deixando maluco, mas acredito que…

Esperem aí, chegou mais uma mensagem. Vou ver aqui. Já volto… eu acho.

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João Rodrigues

Nascido em Riacho das Flores, Reriutaba-Ceará, João Rodrigues é graduado em Letras e pós-graduado em Língua Portuguesa pela Universidade Estácio de Sá – RJ, professor, revisor, cordelista, poeta e membro da Academia Ipuense de Letras, Ciências e Artes e da Academia Virtual de Letras António Aleixo. Escreve cordéis sobre super-heróis para o Núcleo de Pesquisa em Quadrinhos (NuPeQ) na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul.

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