João Rodrigues

Dengue? E eu com isso?!

O dia acorda; eu também. Esfrego os olhos e me levanto. Consulto o relógio. Dá tempo de me espreguiçar mais um pouco numa rede que deixo na varanda para esse fim.

Uma moto passa rasgando o silêncio. E a paz. Logo vem outra, e mais outra, e mais não sem quantas outras. Não demora e a rua fica cheia de automóveis, que passam feito loucos, na contramão, muitos nem avisam pra onde vão, parecem não ter setas. Talvez o piloto, ou o motorista, nem saiba pra que serve a seta. Me encosto no parapeito da varanda e fico olhando o trânsito. Não sei como não acontecem mais acidentes…

Minutos depois desço pra rua. Preciso trabalhar. A cidade já está a todo vapor. Crianças indo pra escola, pessoas indo trabalhar, e outras fofocando mesmo. Algumas mulheres conversam sobre a última vítima do mosquito da dengue. Está internada, muito mal. Talvez seja dengue hemorrágica. “Diabo é isso?”, uma delas pergunta. “Nem sei”, responde a outra. Diz que ouviu alguém falando. Culpam o poder público, a Deus e o mundo.

Caminho mais um pouco e me deparo com vários copos descartáveis da última festinha de aniversário de alguém. Pois é. Lá estão eles, espalhados ao redor da lata de lixo. Acho que não acertaram a boca da lata. Nem sempre os garis recolhem o que fica em volta da lixeira. Passam sempre apressados.

Choveu faz três dias. Chego à pracinha. Ao lado dos banquinhos, a chuva deixou um pouco de si em uns vasos. Um casal de idosos, desatento, conversa ao lado da água parada. Continuo meu tour, observando, antes de chegar ao meu destino. Em frente a uma oficina, vários pneus cheios de água esperam, pacientemente, há mais de uma semana para serem recolhidos.

Pois é.

Reclamar? Nem morto! E eu com isso?! Ele que cuide da oficina dele, a vida é dele. Se aparecer mosquito por ali, o problema é dele; o culpado é ele. E por que não avisei ao Poder Público? De modo nenhum! O Poder Público que cuide de suas atribuições. Alguém deve ganhar pra ver isso, e não sou eu.

Com a consciência limpa, tranquilamente, sigo meu caminho. Reclamar?! Eu? Tenho mais o que fazer. E quer saber de mais? Esse negócio de tantas mortes por causa da dengue é fake news!

E assim me misturo aos milhões de brasileiros que têm o mesmo pensamento medíocre que o meu.

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A dor de cabeça melhorou um pouco. Mas minhas articulações ainda doem. Estou meio assustado por causa de um paciente que acabou de morrer. Estávamos dividindo o mesmo quarto da enfermaria. Dengue hemorrágica.

– Enfermeira, me traga mais uma folha de papel, por favor!

Ainda bem que adoro escrever, senão já estaria louco neste hospital, onde mal consigo dormir, com dor em tudo que é junta. Também já não aguento mais a comida insossa daqui. E, pra piorar, as minhas veias já estão todas furadas de tanto tomar soro.

Se eu não fizesse parte da turma do “E eu com isso?!”…

 

Imagem: https://pixabay.com/pt/illustrations/aedes-aegypti-cartoon-ilustra%C3%A7%C3%A3o-1351001/

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João Rodrigues

Nascido em Riacho das Flores, Reriutaba-Ceará, João Rodrigues é graduado em Letras e pós-graduado em Língua Portuguesa pela Universidade Estácio de Sá – RJ, professor, revisor, cordelista, poeta e membro da Academia Ipuense de Letras, Ciências e Artes e da Academia Virtual de Letras António Aleixo. Escreve cordéis sobre super-heróis para o Núcleo de Pesquisa em Quadrinhos (NuPeQ) na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul.

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