Carina Lessa

Campo Frágil

Julgou acordar enquanto a garganta sufocava. O rosto desfigurado do homem assustador aparece apertando o pescoço. “Vou morrer”, ela pensa. Um grito sobe pela boca do estômago e chega surdo no quarto ao lado. “Mamãe, não me escuta? Vou morrer…”, tenta dizer mais uma vez. “Ele vai me matar e fugir novamente”. O sangue na língua amargando tudo. O homem some feito televisão antiga quando era desligada. De fora para dentro, aquela imagem difusa se apaga num rompante em redemoinho rápido. Tudo fica escuro.

– A cama está toda molhada, não aguento mais isso.

Paulinha acorda assustada com o grito da mãe. O corpo todo doía, mole. Movia-se pesado e sem grande sucesso. Meio anuviada, olha a parede ainda contorcida e manchada. A mãe arranca os lençóis e muda o lado do colchão. Os braços da menina ganham força aos poucos, contraem-se levantando o corpo do piso floral.

– Você já tem cinco anos!!! Não tem vergonha?!

Para fugir da conversa, Paulinha se imaginava num campo florido. Não que tivesse frequentado algum, mas lembrava das estórias narradas pela professora. Sabia que ele podia ser bem grande, com muita luz solar. A professora sempre falava de crianças brincando… Por lá, elas corriam, jogavam bola e até se escondiam atrás de árvores no pique esconde. Ela achava agradável o campo da professora. Ganhava força e, num segundo, escapulia do chão. Escorria para sala feito a espuma com água que a mamãe jogava limpando a sujeira toda. Borbulhava.

Fazia o achocolatado e pegava os três biscoitos de maisena. Sentava em frente à TV. Por lá, chegavam os super-heróis do Esquadrão Relâmpago Changeman.

Change Fênix invade a sala contra todos os fantasmas da Terra. Ela é o próprio robô gigante. Sente o peso do corpo. Revira-se. Rodopia com o furor da moto e nem percebe os quatro cantos do ambiente. Tudo gira e se reveste de novos contornos e vozes. Ri.

Ri ferozmente à medida em que os ataques contra as naves vão se agigantando. Transporta-se ao comando de Dragon. Escapa. Segue os explosivos, derrota os monstros e, naquele frágil instante do campo minado, pensa esconder todos os desastres do mundo.

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Carina Lessa

É ficcionista, poeta, ensaísta e crítica literária. É graduada em Letras, mestre e doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ. Atua como professora de graduação e pós-graduação nos cursos de Letras e Pedagogia da Unesa. É membro da Associação de Linguística Aplicada do Brasil e da ABRALIC.

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