Valdeci Santana

A grande corrida

A grande corrida

A sensação que lhe dá quando as pontas de seus dedos negros tocam o solo da pista de atletismo, é a mesma que teria se tocasse o céu.

Ele estava em solo inimigo, mas, não seria a primeira vez que correria em terreno hostil. O negro do Alabama sentia o espirito vibrar nos longos minutos que transcorriam entre a preparação e o disparo libertador.

Era agosto de 1936. Um colorido verão alemão. A atmosfera festiva trazia animosidade ao espirito da população.

“Wir gehören dir!”. Gritava em uníssono os mais de cem mil espectadores entusiasmados. Nós somos seus!

O führer Adolf Hitler retribuía às manifestações afetivas com sua habitual saudação nazista. O braço esticado a frente do corpo ereto, exatamente como mais tarde ficariam apontados seus canhões e artilharia para milhares de vitimas.

Aquelas olimpíadas não significavam aos olhos daqueles homens nazistas do terceiro Reich, uma simples competição esportiva entre delegações de diversas nações. Era a oportunidade clara de demonstração ao mundo da filosofia nazista e, sobretudo, provar a superioridade da raça ariana.

Suásticas e estandartes nazistas eram exibidos de metro a metro sob as mais variadas formas. Encurvado na pista, pronto para correr com todo vigor, entre grandes nomes do atletismo, o jovem norte-americano Jesse Owens, que nos dias anteriores já havia conquistado três medalhas olímpicas, bem debaixo dos narizes nazistas.

Ele sabia que não era bem vindo ali, ainda que o regime nazista tivesse propagado uma campanha maciça, pedindo calorosa recepção ao seu povo. Mas, ele sabia que somente recentemente retiraram os cartazes intolerantes nas vias públicas como: “Judeus não são bem vindos” ou “Proibida a entrada de judeus e cachorros”. Em seu próprio país também não era diferente. O racismo era um cancro alojado no seio daquela sociedade. Neto de escravos, ele já estava habituado a ter que viajar nos últimos assentos dos ônibus, únicos destinados aos negros, entrar em hotéis e restaurantes pelas portas dos fundos, ser impedido de frequentar determinados clubes, enfim, estar na Alemanha nazista era de certa forma, como estar em casa.

Ele teme sua segurança, e até cogita estar na mira de um atirador nazista, mas, sabe que correr é seu grito contra a violência gratuita do mundo ao redor e nada lhe fará calar. Quando suas pernas aceleram e o vento toca seu rosto, é como se estivesse voando livremente pelo céu, conquistando vastos horizontes, se transportando para um mundo pacifico, bem distante de hostilidades, suásticas, insígnias, nazistas e armas.

Câmeras filmadoras Telefunken focalizam sua performance. Mais de três mil transmissões radiofônicas repetem seu nome ao planeta. Perplexos, os espectadores se convencem de que estão diante de um raio que, a cada passada esbofeteia o orgulho nazista.  E movidos pela euforia se desmancham em saraivadas de aplausos, que começam tímidas, mas, tal qual o fogo no capinzal seco, se alastra. No topo do pódio, aplaudido por centenas de nazistas, o negro que em silêncio desafiou e venceu Adolf Hitler. E quando seus olhos se chocaram num rápido relance, souberam mutuamente que acabaram de travar uma batalha épica.

Não houve aperto de mãos, somente o longo diálogo entre dois olhos que se encontraram rapidamente e disseram tudo. Adolf Hitler cumprimentou-o com vago meneio de cabeça, ao que ele, triunfante retribuiu no mesmo tom.

Naquele dia, Jesse deu uma verdadeira lição de vida, de igualdade e de superação, porém, se lhe perguntassem, ele diria que apenas correu.

Fonte da imagem: https://pixabay.com/pt/photos/sprinter-atletas-jesse-owens-63157/

 

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Valdeci Santana

Escritor. Autor de 4 romances: "As palavras e o homem de bigode quadrado", "A prima Rosa", "Dia vermelho" e "O rei da Grécia" Palestrante, contista e apresentador no programa #Cultura Tv Batatais

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