Oswaldo Eurico Rodrigues

Metendo o nariz onde somos chamados

Intervenção na fotografia do próprio autor (Oswaldo Eurico Rodrigues)

Metendo o nariz onde somos chamados.

Depois de longo tempo longe do teclado e da folha de papel, retornei agora por puro desespero. Estava desaparecendo por falta de letras, em dívida intelectual imensa a juros colossais. Devo a mim mesmo e a outros. Entre os credores, um aluno muito simpático e criativo. Numa determinada aula, ele teorizou sobre o til. Na realidade, falou sobre o formato do sinal gráfico. O garoto comparou as formas onduladas do til às abas dos nossos narizes. Nunca havia pensado nisso. Aliás, nem sempre temos o direito de pensar com criatividade e lançar olhar mais atento e sensível sobre a vida.

Nas aulas de gramática, eu ensinava sobre a acentuação das monossílabas tônicas. Os alunos perguntaram se só existiam o acento agudo e o circunflexo. Eu respondi que havia também o acento grave, o aterrorizante mensageiro do fantasma da crase. Não entrei nos detalhes sobre o fenômeno do encontro de um a com outro a. Cumpri o programa do livro e fui ensinando sobre a acentuação das palavras de uma sílaba apenas. Um aluno questionou sobre o til. Eu expliquei não se tratar dum acento, mas sim de um sinal a marcar a nasalidade. A partir da minha explicação, uma voz vinda do fundo lançou a tese das abas do nariz. E fez o contorno com os dedos e eu, pasmo, o acompanhei e não mais esqueci disso. O tempo passou e eu fiquei com esse texto na fila de gestação. Assim como no nosso mundo corrupto de cada dia, passei essa ideia a frente das outras.  Seu nascimento foi antecipado, porém não prematuro. Nasceu no tempo certo das minhas incertezas.

Estava ficando louco de tanta loucura a minha volta. Acabava por reproduzir insensatez. Talvez a maior delas seja parar de escrever (e de ler bons livros). Na semana passada comecei tentando modificar esse estado. Fiquei boa parte da tarde numa biblioteca com nome de escritor romântico brasileiro. Li várias páginas duma coletânea maravilhosa de poesia do Brasil. Mergulhei no tempo em que esgotava o meu cartão de leitor das bibliotecas onde era sócio. Tomei fôlego agora para retornar. Qualquer dia, vou falar mais detalhadamente sobre essa tarde incrível.

Voltando nas ondas do til… Parei um pouco e consegui visualizar meu aluno da penúltima fileira antes da janela. Do lado de fora, um terreno murado, mas com o capim altíssimo e algumas poucas árvores. Avançando-se o olhar, vejo a rua onde moro e algumas casas. Não vejo a minha querida Serra dos Órgãos nem chego a visualizar o Corcovado. Vejo a arquitetura das casas de pessoas comuns. Um dia, quem sabe, estarão preservadas como exemplo de construção do fim do século XX e começo do XXI. Talvez eu não esteja presente nem mesmo neste texto. Talvez o colégio não exista no bairro, na cidade, no mundo… Quando o pensamento é afugentado, a escola transforma-se em depósito de gente. Estamos trilhando esse caminho do esvaziamento das mentes, da morte da sensibilidade. Agora você entende o porquê desse texto. Não posso deixar de registrar a observação do menino. Ela é preciosa! A carência de comentários interessantes e a coragem de expressar pensamentos criativos está tão escassa… O registro dessas situações precisa ser feito. Existem outras tiradas maravilhosas. Uma das próximas a pular a fila de publicação tem o título provisório de “com-o-rei-na-barrigamente: um estudo sobre a arrogância”. Aliás, arrogância é algo a se multiplicar nestes novos tempos de inteligência desperdiçada e banimento da sabedoria.

Espero acrescentar vários tis aos novos textos sem sacrilégio ou heresia. Entre os mergulhos, uma pausa para respirar. As vírgulas estarão no lugar certo? Qual será o tom e a força de cada palavra? Espero escrever como quem inspira, expira e transpira ideias. Os sons únicos da minha língua encontram outros sons únicos da nossa e doutras línguas. Inalemos da música dessa orquestra imensa a se afinar independentemente do tamanho da plateia.

 

 

 

 

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2 Comentários

  1. É verdade, meu querido poeta! O Mundo anda sem inspiração… Tudo está tão dinâmico que, quando alguém rompe a barreira da praticidade a gente fica sem ação e o pensamento voa risonho de nós mesmos.

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