Elias Antunes

“O CORVO”, TRADUZIDO POR EDIVAL LOURENÇO

“O CORVO”, TRADUZIDO POR EDIVAL LOURENÇO

 Por Elias Antunes

A tradução da poesia mostra-se como a melhor forma de transpor as barreiras da cultura e da arte, todavia exige do tradutor trabalho acurado e de esforço.

O resultado, muitas vezes, torna-se surpreendente pela qualidade, inteligência e criatividade do tradutor.

Foi o que aconteceu com a tradução do poema “O corvo”, de Allan Poe realizada pelo escritor Edival Lourenço, a qual transcrevemos aqui:

 

O URUBU

Allan Poe

Tradução: Edival Lourenço

Na meia noite febril, clima funesto e sombrio
Lendo antigos alfarrábios de seita paranormal
Na madorna quase ao sono, um som que mal dimensiono
Como fosse algum gnomo no meu portal, toque! Toque!
O ruído me dá choque, quem seria e… toque! Toque!
— Algo do bem ou do mal?

Ah!Até hoje bem me lembro. Um pleno agosto em dezembro
Em que o abajur avoengo jorra sombra sepulcral
Me injeta pavor na veia, no que minh’alma incendeia
Pensei: Veio para a ceia o fantasma de Lenora!
Quanta hesitação agora! O além devolveu Lenora.
Será por bem ou por mal?

A cortina em fluidez, em macabra gravidez
A me pregar uma peça com seu truque fantasmal
Um susto paralisante, feito um inferno circundante
Mas eu buscava um calmante um lenitivo qualquer:
Um amigo (homem ou mulher) a pedir coisa qualquer
É só isso, nada mal!

E finalmente me ergui, ressabiado qual sagüi.
“Me perdoe aí quem seja, não fiz esperar por mal
É que eu estava entretido, em leitura de tempo ido
O som só me foi sentido, quando reparei a porta
No marasmo da hora morta.” E quando entreabri a porta
Escuridão infernal!

Espreitei a noite escura, não vi nada, que loucura!
Aquela noite aziaga sob o torpor hibernal
Horrorizado em pavor, ante o miasma e o negror
O nome do findo amor então sussurrei: Lenora!
E uma voz assustadora soou em eco: Lenora!
Depois, silêncio total!

Com a alma febricitante, quis transpor aquele instante.
Logo o ruído recomeça, quase arrombando o vitral
Eu penso: ah! não é nada, só o vento em debandada.
Por que a alma apavorada? É vento de mau agouro
Que quer me aplicar desdouro. Só vento de mau agouro
Que não me faz nenhum mal.

Abro a janela e em revoada, vem entrando a alma-penada:
Um litúrgico urubu, vindo de era imemorial
Qual lorde passa pimpão, verdadeiro assombração
Sobre o busto pousa então, uma escultura de Cristo
Com seu humor de Mefisto, sobre a escultura de Cristo
Se empoleirou, não faz mal!

Miro a ave de escuro manto, malcheirosa, sem encanto,
Bicho tosco avariado, até rio do animal
Sacrificado urubu, mal emplumado, mal nu,
Entre altivo e jururu. Um embaixador do inferno
Promotor do azar eterno, sócio emérito do inferno.
Crocita o urubu: foi mal.

Encabulei com a fala, duma ave daquela iguala
Um urubu infeliz, me retorquindo triunfal
Pois nunca vi criatura, tão metida na postura
E com sua caradura contrapondo o que eu dizia
Postulando primazia no argumento que eu dizia
Com arremate: está mal.

Outra coisa não falava, na escultura ali assentada
Sem dispor de outro roteiro a mascote funeral
Tão parada quanto um cacho, sem mover um só penacho.
Já cansado de esculacho, digo: por favor, vá embora.
Já é demais a demora, por amor, vá embora
Grasna o urubu: nem por mal!

Com aquele bicho anexo, fico ainda mais perplexo
É tão pouco o que ele diz e me faz débil mental
De um vocabulário mínimo, mas num tom um tanto cínico
Que parece sem equívoco, lhe ensinou antigo dono
Rebatê-lo não há como, com refrão do antigo dono:
Nunca, nunca foi tão mal!

E perante o bicho escroto ensaio um riso maroto.
Fiz girar minha poltrona, diante da ave no umbral
Qual será o secreto escopo, deste encontro assim tão oco
Que vai me deixando louco este urubu tão sinistro
Pressão maior não resisto, e então o urubu sinistro
Grasna de novo: está mal.

Com seu olhar fulgurante a me queimar o semblante
Me refugio no assombro de pensamento abissal
No meio da madrugada, com minh’alma incinerada
E sem entender mais nada, sob a luz que não lilás
Momento eterno e fugaz, sob a luz que não lilás.
E o urubu me diz: vai mal!

O tempo ficou avesso, em suspenso pó de gesso
Como fosse tosco incenso, de algum atroz arsenal.
Urubu desventurado, mafioso depravado
Vê se vai pra outro lado, se não me trouxe Lenora.
Ela é o bem que quero agora, minha querida Lenora.
E diz o urubu: vai mal.

Oh, profeta, ser das trevas! Fruto de forças malevas
Portador de sortilégio e tormenta atemporal
Servo da corte maldita, volta pro mundo que habita
E não mais aqui crocita. Mas antes, diga a verdade
Onde está minha beldade? Imploro pela verdade.
E o urubu me diz: vai mal.

Oh, bifronte, ser horrendo, outra coisa não desvendo
Você é tudo de péssimo, nada que sirva a um mortal
Mas se tem um bem restante em seu coração pulsante
Que traz de mundo distante, me conte algo de Lenora
Meu bem-querer desde outrora, me conte algo de Lenora!
E o urubu me diz: vai mal.

E nesta hora lhe despeço, ser monstruoso e funesto
Pegue a sua tempestade, sua corrente em espiral
Nem deixe aqui sua pluma, não fique mesmo nenhuma
Bicho de asco e verruma, alce voo inferno afora
Suma daqui sem demora, alce voo inferno afora
O impassível diz: vai mal!

Sem se mexer, tenebroso, um amuado revoltoso
Empoleirado no cristo, inerte estátua de sal
Bago de fogo em cada olho, anjo de horrendo refolho
Lá dos infernos o estolho, sob a luz sua sombra estira
Sobre minh’alma que expira, sob a luz sua sombra estira.
Por fim suspira: vai mal!

 

Este trabalho, ouso dizer, é uma obra-prima da tradução poética, seja pela inventividade do tradutor, por sua argúcia, conhecimento e capacidade de traduzir/recriar todo o clima existente quando do surgimento do original.

Edival Lourenço conseguiu vencer as barreiras geográficas, do tempo e culturais existentes.

“O Corvo” é um dos poemas mais famosos do mundo e influenciou muitas gerações de escritores, inclusive Machado de Assis, Fernando Pessoa, José Lira, Baudelaire, Mallarmé e tantos outros que se debruçaram sobre ele para transpô-lo para suas línguas maternas.

Edival Lourenço, poeta, romancista, cronista e contista, detentor de inúmeros e importantes prêmios, como o Jabuti e o Prêmio de Romance do Paraná, agora se mostra com maestria na tradução.

 

Fonte da imagem: Foto do autor.

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Elias Antunes

Filho de um dos trabalhadores pioneiros que construíram Brasília, Elias Antunes nasceu em Goiânia, em 1964. Trabalhou como servente de pedreiro, vendedor ambulante, contínuo. Depois, entrou na Secretaria de Segurança de Goiás, por concurso. Bacharel em Direito, UCG, Mestrado (incompleto) em Teoria Literária, UnB. Em 1993, por concurso, entrou no Tribunal de Justiça do DF, passando a morar no Distrito Federal. Concomitantemente, foi professor do ensino médio e universitário de História da Filosofia, de Redação, de Direito e Legislação e de Teoria Literária. Seu livro de poemas “Chamados da Chuva e da Memória” ganhou o prêmio da Funarte de Criação Literária e o prêmio “il convívio”, na Itália (1º lugar). Seu romance “Suposta biografia do poeta da morte”, ganhou os prêmios: Hugo de Carvalho Ramos, 2008 (1º lugar), Prêmio Jabuti, 2011 (finalista), prêmio “il convívio”, na Itália (1º lugar). Tem 20 livros publicados e ganhou mais de 300 (trezentos) prêmios. Participa de mais de 100 antologias e obras coletivas no Brasil e no exterior. Cocriador das revistas O artesão, Rotina, Flor & sol e Linhas & Letras e dos jornais Tempoesia, Jornal de Poesia e Artefatos. Tem poemas traduzidos para os idiomas: espanhol, francês, inglês, esperanto, galego, romeno, italiano, catalão, alemão, sueco, russo e hindi. Com publicações nos países: Rússia, Itália, Argentina, Portugal, França, Estados Unidos, Espanha, Romênia, México, Suécia, Vietnã, Índia e Venezuela.

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