Nosso Cordel

Nosso Cordel – A casa velha de taipa – João Rodrigues

A casa velha de taipa

 

Na casa velha de taipa

Onde morei lá no mato

Eu resgatei minha história

Num velho porta-retrato

Mamãe comigo pequeno

Papai de rosto sereno

Posava sem ter vontade

O artista e sua destreza

Tentavam mostrar riqueza

Onde só tinha humildade.

 

Papai empaletozado

Que o retratista criou

Cobrindo a pele queimada

Que o vapor do sol queimou

Mamãe muito maquilada

De roupa branca, engomada

Eu bem gordinho e linheiro

Tinha no sorriso um brilho

Que mais parecia com filho

De um ricaço fazendeiro.

 

Bem assim atrás da gente

Tinha uma verde paisagem

Saltando d’água uns peixinhos

De uma bonita barragem

Um touro gordo pastando

Um belo cisne nadando

Chega suas asas brilhavam

Na barragem reluzente

E bem de frente ao nascente

Uns passarinhos voavam.

 

Quem visse aquele retrato

Com toda aquela magia

Não via o que ti’a por trás

Daquela fotografia

O fato é que o retratista

Com a sua alma de artista

Repleto de boa vontade

Ou talvez sem perceber

Fez assim para esconder

A nossa simplicidade.

 

Mas quando olhei para o lado

Vi num canto da parede

Um torno de aroeira

Onde eu pendurava a rede

Vi mamãe me balançando

Uma cantiga cantando

Me botando pra dormir

Meu irmão se balançava

Mamãe depressa gritava:

“Cuidado pra não cair!”

 

A cadeira de balanço

Onde vovô se sentava

Forrada com um coxim

Vez ou outra balançava

Tranquilamente, bem calma

Talvez fosse sua alma

Vindo comigo falar

Eu fiquei meio assustado

Em frente dela, parado,

Olhando o seu balançar.

 

Dei uma olhada na sala

Vi nossa maior beleza

Um rádio antigo de pilha

Tocando em cima da mesa

Devidamente forrada

Com a toalha bordada

Que mãe ganhou de titia

De tarde o forró troava

Mas às seis horas parava

Pra tocar “Ave-Maria”.

 

Cheguei na sala do meio

Que já estava em ruína

Vi a parede entirnada

Do fogo da lamparina

Vi o ferro de engomar

A máquina de costurar

Minha velha baladeira

Do lado do patuá

E num torno de jucá

Ficava uma cartucheira.

 

Olhei para a camarinha

A porta estava fechada

Papai e mamãe trancavam

Depois da luz apagada

Ali eu não pude entrar

Mas consegui escutar

Um choro meio espremido

Olhei pela fechadura

Vi a minúscula figura

De um bebê recém-nascido.

 

Entrei num quarto onde pai

Guardava a nossa riqueza

Nosso pão de cada dia

Que não faltava na mesa

Num canto era puro brilho

Uns dez alqueires de milho

Espalhados pelo chão

Rapadura, arroz, farinha

Coisa de primeira linha

E dois tubos de feijão.

 

Meu nariz denunciou

Um cheiro lá na cozinha

Quando entrei nela, vi mãe

Temperando uma galinha

Ela me disse: “Ande! Venha!

Pegue mais dois paus de lenha

Bote no fogão agora.

Pois seu pai já vem chegando!

Escutei ele falando

No terreiro lá de fora.”

 

Aquela cena passou

Veloz como um vendaval

E meus olhos se voltaram

Pra porteira do curral

Isso pra mim foi demais

Quase desabei pra trás

Deus do céu, quanta emoção!

Fiquei um pouco aturdido

Vi papai todo vestido:

Perneira, chapéu, gibão.

 

Ainda deu tempo eu ver

Um cena muito bela

Papai puxou minha mão

Me botou na lua da cela

Deu u’a volta no terreiro

Mas foi tudo tão ligeiro

Porém ficou na lembrança

Hoje, meu coração diz

Que fui bastante feliz

Nos meus tempos de criança.

 

No alpendre, um carro de boi

Descansava do trabalho

Vi canga, cordas, arreios

E uma penca de chocalho

Um cachorro vigiava

Tudo o que papai deixava

Naquele alpendre, guardado

Rosnou e quis me morder

Mas ao me reconhecer

Vêi se deitar do meu lado.

 

Ali, por alguns minutos,

Fiquei olhando o terreiro

Vi um ninho de rolinha

No galho de um cajueiro

Dois filhotes bem cuidados

Juntinhos, alimentados

Dormindo com confiança

Olhei pro meu velho abrigo

Assim também foi comigo

Nos meus tempos de criança.

16

Na velha casa de taipa

Onde por anos vivi

Após passar muitos anos

Claramente percebi

Que em nossa simplicidade

Existia felicidade

Sempre existiu! Pode crer!

Mas o velho retratista

Mesmo sendo um grande artista

Não conseguiu perceber.

 

João Rodrigues

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Redação

A Revista "Entre Poetas & Poesias" surgiu para divulgar a arte e a cultura em São Gonçalo e Região. Um projeto criado e coordenado pelo professor Renato Cardoso, que junto a 26 colunistas, irá proporcionar um espaço agradável de pura arte. Contatos WhatsApp: (21) 994736353 Facebook: facebook.com/revistaentrepoetasepoesias Email: revistaentrepoetasepoesias@gmail.com.br

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