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Suplemento Araçá – Vol.02 – nº04 – Out./2022 – Artigos & Ensaios: “A ANTROPOFAGIA REGURGITADA EM MAKUNAIMÔ – Lívia Penedo Jacob

ISSN: 2764.3751

A ANTROPOFAGIA REGURGITADA EM MAKUNAIMÃ
Lívia Penedo Jacob[1]

Muito se fala sobre a antropofagia modernista, tão bem sintetizada no Manifesto Antropófago oswaldiano, no qual lemos: “[…] Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida. E a mentalidade pré-lógica para o Sr. Lévy-Bruhl estudar. Queremos a Revolução Caraíba”. Lévy-Bruhl, cujas ideias hoje são consideradas superadas, atuou nas áreas das então chamadas ciências sociais, defendendo em seus escritos que a mente humana podia ser dividida em duas categorias: o pensamento primitivo, alheio à lógica; e o pensamento moderno, cientificista. Vemos, que, se por um lado Oswald refuta a antropologia de Lévy-Bruhl, por outro lado, valoriza a união indígena sob uma perspectiva etnocêntrica, pois, afinal, utiliza a terminologia “caraíba” de maneira genérica, aplicando-a a todos os nativos e desconsiderando as especificidades de cada grupo.

Essa faux pas oswaldiana revela-nos o caráter e a essência do movimento antropófago, que, longe de rejeitar o olhar europeu, buscou ressignificá-lo a partir das nossas referências não ocidentais. Valorizava-se, dessa maneira, também as culturas brasileiras que integram a Cultura Brasileira, assim entendido o conjunto abstrato das diversas influências que compõem a pluralidade nacional. Passado o Modernismo, esse movimento reverberou e reverbera em outros momentos da nossa produção artística, conforme observa Figueiredo (2010, p. 21) para quem houve uma retomada da antropofagia pela Tropicália a partir de um viés calcado no reconhecimento de categorias marginalizadas dentro da sociedade, não mais descritas como superiores ou autóctones, e sim como existências que pretendem ter suas diferenças respeitadas.

Assim, podemos concluir que, para além da influência acadêmica norte-americana, o avanço recente dos estudos culturais encontrou lugar em solo brasileiro também por influxo dessa “modernidade latino-americana tardia” (GÁRCIA CANCLINI, 2008). No campo da literatura, por sua vez, a contemporaneidade é certamente “herdeira” do Modernismo no que tange às produções “marginais”, termo que para Patrocínio (2013, p. 32) designa “um fenômeno social urbano, promovendo uma compreensão rígida acerca das relações sociais que se estabelecem no fluxo entre centro e periferia”. O mesmo autor esclarece que a valoração desse tipo de movimento se dá por meio de uma busca ética, em dissonância com outros movimentos literários que se aproximavam por parâmetros estéticos solidificados.

Nesse contexto, destacamos a relevante literatura indígena contemporânea, assim entendida a produção escrita recentemente pelos povos originários e que objetiva deixar para os novos o legado dos mais velhos, segundo dizer da escritora Márcia Kambeba (DORRICO et al., 2018, p.44). Também essa literatura visa, muitas vezes, questionar o mainstream a partir de reflexões que deslocam pontos de vista corriqueiros: já não é o branco a escrever sobre o “índio”, mas os nativos a escreverem sobre si mesmo e sobre os outros. É o que vemos na peça Makunaimã, de autoria coletiva tauperang, dramatizada por Deborah Goldemberg a partir de um ciclo de discussões ocorrido no centro cultural Casa Mário de Andrade, em 2018. A obra dialoga com a paronímica rapsódia do autor de Pauliceia desvairada (1922), a fim de debater sua importância no contexto do século passado, bem como na atualidade.

Marco do Modernismo, Macunaíma (1928) foi recepcionado com pouquíssimo entusiasmo quando primeiramente publicado. A obra, que leva o nome de um herói pemon, é, segundo o teórico inglês Gerald Martin (apud SÁ, 2012), um divisor de águas da representação do indígena na literatura latinoamericana. O autor era neto de Joaquim de Almeida Leite Moraes, branco de tradicional família paulistana, com Ana Francisca Gomes da Silva, uma mulata de origem humilde. Mário de Andrade carregou, portanto, o estigma da miscigenação, sentimento que expressou na prosa que lhe deu maior fama: Macunaíma nasce preto, em uma tribo, e só consegue entrar em São Paulo após passar por um processo mágico de embranquecimento.

Embalado, ainda, pela anima antropofágica do Modernismo, o escritor conduziu toda a narrativa de seu Macunaíma a partir da ideia de miscigenação literária, colocando lado a lado diversos aspectos da cultura nacional. Desse modo, a literatura oral indígena e a afro-brasileira são acopladas ao texto, inaugurando um modelo literário até então inédito. Mas, há que se assumir Mário de Andrade como pensador submetido à forte influência das vanguardas europeias, como, aliás, o foram todos os modernistas e conforme mea culpa do próprio: “(…) estudávamos a arte tradicional brasileira e sobre ela escrevíamos, e canta regionalmente a cidade materna o primeiro livro do movimento. Mas o espírito modernista e suas modas foram diretamente importados da Europa” (ANDRADE, 1974, p.235-236).

Essa inclinação europeia de Macunaíma, inevitável dado o contexto histórico de sua escrita, é alvo de reflexões na supracitada Makunaimã. Na peça, Mário de Andrade é “ressuscitado” em sua própria casa – hoje transformada em museu – e acaba por ser confrontado por diversos indígenas das etnias tauperang, macuxi e wapixana, além de outros sujeitos não nativos ali presentes, como um filósofo, um antropólogo, um doutor em literatura, dentre outros. Notamos, pela leitura da obra, certa fidedignidade à personalidade do modernista, como, por exemplo, na passagem em que ignora as opiniões dos acadêmicos, pois, afinal, diferente dos intelectuais de sua geração, Mário optou por estudar piano no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, desprezando, assim, a então tradicional Faculdade de Direito.

A peça contemporânea traz, portanto, à tona, algumas questões pertinentes à produção e personalidade de Mário de Andrade recentemente debatidas em pesquisas recém-publicadas. A certa altura da história, por exemplo, Ariel, filósofo e poeta, diz ao “defunto-autor” que se a Semana de Arte Moderna ocorresse no século XXI, ele teria ido de dreadlocks. A esse questionamento sobre um suposto “embraquecimento” de suas ancestralidades, Mário de Andrade, agora personagem, afirma: “[…] eu tinha a mais plena consciência de quem eu era e de onde estava” (TAUPERANG, 2021, p.30). Essas reflexões nos remetem à Negro Drama: a cor duvidosa de Mário de Andrade, obra publicada por Oswaldo de Camargo, em 2019, na qual se discute certos tabus envolvendo autores mestiços, dentre eles o próprio Mário, que se definia como portador de uma “cor duvidosa”.

Outro tema retomado por Makunaimã diz respeito à “apropriação cultural”, termo cujo uso contemporâneo remonta ao artigo “The other face” (1985) do sul-africano Ian Steadman. Assim, quando questionado sobre os direitos autorais, jamais pagos por Koch-Grunberg ao tauperang Akuli (que narrou as peripécias de Makunaimã ao etnógrafo alemão, gerando a obra Von Roraima zur Orinoco, inspiração para a rapsódia andradiana), Mário afirma, com razão, que nem sequer à época dele era possível imaginar um cenário onde indígenas se interessariam em escrever e publicar. Desse modo, ao que tudo indica, a obra colabora para tornar coerente a discussão sobre o tema, ficando subentendida a inconsistência de análises anacrônicas.

Um dos momentos mais altos da peça conta com a fala de Avelino Tauperang, neto do próprio Akuli. Avelino revela que muitos membros de sua aldeia, aí incluídos seus pais, se converteram à religião adventista de sétimo dia, e, a partir daí, “[…] a mensagem proibiu aquilo que era para fazer. Colocou uma barreira entre nós e essas coisas que a gente está falando aqui” (TAUPERANG, 2021, p.45).  A declaração de Avelino gera tensão entre os outros presentes, ganhando relevo a resposta do artista Wapixana Laerte, para quem “a religião monoteísta mata a cultura indígena” (IDEM, p. 47), visto que as histórias míticas da entidade Makunaimã tornam-se “tarém”, isto é, magia, e, por conseguinte, impróprias segundo o ponto de vista evangélico. Desse modo, além de trazer para o grande público parte da realidade histórico-cultural dos povos pemons, a obra em pauta não ignora aspectos controversos pertinentes a esses contextos, abordagem que nos remonta a outras produções nativas recentes, a exemplo do filme “Ex-pajé”, cujo enredo retrata o drama do abandono de tradições originárias em prol das práticas cristãs.

Merecem, ainda, destaque as pinturas de Jaider Esbell impressas no corpo da obra. Artista da etnia macuxi, Jaider, “se encantou” em 2021, aos 42 anos, mas deixou um legado incontável de obras visuais, histórias, reflexões, performances e pajelanças. Sua produção foi marcada por uma condução xamânica, conforme revelava o artista: “Tive que fazer um trabalho espiritual xamanístico para imaginar o que era ser macuxi antes da colonização. Para poder ser um artista indígena de verdade” (IDEM, p.57). Essa arte que “rumina” as tecnologias ocidentais – aí incluídas a escrita e a própria internet com suas redes sociais – para depois regurgitá-las a partir do ponto de vista dos povos nativos, é uma resposta indígena contemporânea à antropofagia modernista. Obra que exemplifica essa máxima nas visualidades é o quadro “Re-Antropofagia”, de Denilson Baniwa, que apresenta a cabeça de um Mário de Andrade morto, oferecida em um cesto baniwa.

A arte nativa, portanto, aí incluindo-se a literatura, espelha os anseios oswaldianos por uma “revolução caraíba”, uma vez que, hoje, os povos originários assumem autorias em diversos campos do saber, ocupando espaços outrora a eles negados. Assim, a peça Makunaimã, de autoria coletiva, busca se apropriar das linguagens ocidentais, sobretudo aquelas estabelecidas pelo Modernismo, a fim de descolonizá-las. Concluímos, pela sua leitura, que Mário de Andrade, embora passível de críticas (e quem não o é?), deixou um legado subversivo à sua época, cujos ecos se estendem aos dias de hoje.

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Referências

ANDRADE, Mario de. Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Martins Editora, 1974.

______. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2013

ANDRADE, Oswald de. O manifesto antropófago. In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro: apresentação e crítica dos principais manifestos vanguardistas. 3ª ed. Petrópolis: Vozes; Brasília: INL, 1976.

DORRICO, Julie. et al (Org.). Literatura indígena brasileira contemporânea: criação, crítica e recepção. Porto Alegre: Editora Fi, 2018.

FIGUEIREDO, Eurídice. Representações de etnicidade: perspectivas interamericanas de literatura e cultura. Rio de Janeiro: 7Letras, 2010.

GARCÍA CANCLINI, Néstor. Culturas híbridas. Tradução de Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão. São Paulo: Edusp, 2008.

PATROCÍNIO, Paulo Roberto Tonani do. Escritos à margem: a presença de autores de periferia na cena literária brasileira. Rio de Janeiro: 7Letras, 2013.

SÁ, Lúcia. Literatura da floresta: textos amazônicos e cultura latino-americana. Rio de Janeiro: EdUerj, 2012.

TAUPERANG. Makunaimã: o mito através do tempo. São Paulo: Elefante, 2021.

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[1] Doutora em Teoria da Literatura e Literatura Comparada (UERJ) e mestra em Estudos da Linguagem (PUC-Rio).

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