Você, Escritor! – Poema: “Não é tempo de poesia” – Mayara Beani

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Não é tempo de poesia.
Mayara Beani

Hoje eu sonhei de novo,
Tinha um elefante de chapéu e uma árvore brilhante no deserto,
O mesmo bar de paredes azuis sob os coqueiros,
A mesma janela de madeira podre,
E o mesmo cheiro de mar.
Acordei, e não queria;
Aqui fora pessoas morrem – são 3000 por dia –
Então desculpa, não consigo falar em poesia.
Faltou oxigênio na Zona Norte,
e os doentes foram transferidos para a Zona Leste;
No Rio, teve uma festa no trem, e as praias ficaram vazias.
No sonho era só eu, a praia cheia, mas estava sozinha;
Aqui morrem 3000 por dia, e no rádio toca “Tangerina”.
Hoje fez um sol de praia no meu quintal,
E minha amiga me disse que não tá pronta pra morrer;
A minha mãe me disse “fiquei a semana toda em casa, só seu pai teve que
sair” – e isso já é uma vitória.
Faltou oxigênio na Zona Norte, e vai faltar remédio também,
Mas as vacinas já estão chegando, enquanto isso, tem gente passando fome.
As praias vão continuar vazias, não é tempo de poesia.
Acordei às 7 e não consegui dormir, não recomendo.
Tinha um elefante de chapéu e um rapaz meditando,
O deserto estava cor-de-rosa, com o mesmo cheiro de maresia, e a mesma
janela de madeira.
Nesses dias a gente nunca sabe se está com falta de ar ou só cansada;
Eu só queria ser um pouco mais forte pro álcool – foi só meia taça!
No rádio tocava a Belchior, “Hora do almoço”.
Outro dia teve um assalto no mercado, e um arrastão em outro no dia seguinte;
Um cadeirante ameaçou explodir uma bomba no INSS,
E um professor estava vendendo balas no sinal;
No domingo teve manifestação pelo direito de fazer festa;
Na segunda, o Seu Zé pegou o ônibus lotado de novo.
Ontem minha amiga me disse que não quer morrer.
Hoje, definitivamente, não foi dia de poesia.

Hoje fez muito calor, e a tarde se pôs silenciosa apesar das maritacas lá fora;
Estou trabalhando na cadeira nova que comprei,
O “Teago Oliveira” está cantando no rádio,
e um elefante de chapéu medita no deserto de cor violeta,
Com aquele mesmo cheiro de maresia.
Morrem 3000 por dia, e as verdades têm que ser ditas,
Mas não é tempo de poesia.
Eu queria terminar com “it’s all over now, Baby Blue” do Bob Dylan,
Mas eu a perdi na minha lista…
Então definitivamente, não é mesmo tempo de poesia.

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Mayara Beani, nascida no ABC Paulista, depois de 10 anos morando no interior de SP, hoje fixa raízes em Praia Grande. Escritora e estudante de Jornalismo.  Possui um livro solo publicado – “Qui-qui, sobre livros e pássaros” (Editora Adonis/2017) além da participação nas coletâneas: Poetize 2019, Enluaradas I 2021 e Contos do nosso Interior 2022. Premiada nos concursos de poesia “Festival Culturando de Literatura” (2°Lugar – Out/2021) e “Prêmio Literário Rubem Alves da 15°Feira Nacional do Livro de Ribeirão Preto (3°Lugar – 2015).