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Você, Escritor! – Conto: “E agora, Josué?” – Claudia Rato

— Você, Escritor!: “Coluna destinada a publicação de textos de escritores acima de 18 anos. Se você é poeta, escritor, trovador, mestrando, doutorando e quiser ter seus textos publicados aqui no portal, basta enviar para: revistaentrepoetasepoesias@gmail.com

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E agora, Josué?
Claudia Rato

_ Tatu? Tatu de quê?

_ Tatu.

_ Como assim, Tatu. Tatu e o que mais?

_ Só Tatu.

_ Assim o senhor não pode prosseguir, faz um esforço e tenta lembrar.

Mil novecentos e oitenta. 27 de outubro. Dez da manhã.

_ Josué, óh, Josué, venha cá, meu filho. Vá até a casa de sua avó e entregue a ela esse pedaço de carne seca, mas ande logo que ela tá te esperando.

_ Tá bom, mainha, já vô. Vô só calcá a chinela, vô num pé e volto no outro.

_ Vá descalço mesmo porque se demorar a sandalha vai cantar.

_Mas o sol tá quente, mainha.

_ Não quero saber, ande logo, moleque, calça logo isso aí.

Mil novecentos e oitenta. 27 de outubro. Dez e cinco da manhã.

_ Ô, Josué, cê não qué brincá de taco com a gente?

_  Posso não, tenho que levar isso aqui pra minha vó.

_ Dexa de bestagem, é rapidinho, só uma vez.

_ Tá bom, tá bom, eu vou, mas olha, não posso demorar.

Primeira tacada de Josué e a bolinha vai parar num bueiro.

_ E agora, Josué, o que eu vou dizer pro Anastácio, ele me emprestou.

_ Deixa comigo, eu desço lá e pego num pé só. Olha a carne da minha vó senão minha mãe vai me matar.

Josué e o amigo Caju quebraram parte da tampa, se entreolharam, e Josué, com olhar valentão e perna bamba, fez sinal de que resgataria a tal bolinha. O colega só precisava segurar o rapaz pelos pés para que não caísse bueiro abaixo.

_ Sai, cachorro, sai pra lá.

Loló, o vira-latas esfomeado de cor caramelo e rabo pintado, aproveitou a distração do menino para dar o bote na carne. Sem saber o que fazer, Caju largou de mão do amigo para correr atrás do meliante.

_ Socorooooooo. Nossa, que lugar escuro aqui. Bolinha, cadê você, vamos, eu tenho mais o que fazer, minha mãe vai me matar.

Josué não se deu conta, mas se distanciava cada vez mais de onde estava. Jamais imaginou avistar em território subterrâneo túnel tão gigante, visto no olhar de um menino de apenas oito anos que mal sabia que aqueles tubos acimentados um dia tirariam o povo de Cercadinho do Norte da lamaceira que era cada vez que chovia naquele esquecido bairro de Cajueiro do Agreste.

Até eco fazia. Num primeiro momento, Josué gostou da brincadeira.

_Ei. Eeeeeeeeeeeei. Oi. Ooooooooooi. Nossa, que legal, eu falo e escuto a minha voz.

O garoto não se deu conta, mas estava perdidinho, sem noção de nada, de tempo, nem distância.

Mil novecentos e oitenta. 27 de outubro. Seis da tarde.

Aquela empolgação toda de se deparar com o inusitado deu vez ao medo. Até mesmo um frio inexplicável, em meio ao calor de quase quarenta graus, apossou-se do menino, que passou a sentir pavorosos calafrios, já que o que se ouvia lá de baixo era um forte barulho de trovão, diante da escuridão que tomou conta do local. Sim, o sol quente daquela tarde já dava lugar a uma forte tempestade prestes a chegar.

Lá embaixo havia muita lama e poças d’água da chuva do dia anterior. Josué parecia ter entrado no meio da terra, feito Tatu.

Ele olhava procurava, procurava, e nada de avistar sequer um tiquinho de claridade. Caiu aos prantos, chorou como nunca. Só pensava no quanto fora desobediente e que se chegasse vivo em casa teria seu coro arrancado pela mãe, tamanha fúria que estaria.

Nunca aquele pobre moleque esteve tão sozinho e ao mesmo tempo tão acompanhado, isso porque pequenos roedores, aos quais ele tinha pânico só de ver em desenhos, circulavam por lá como quem dominasse o espaço.

_ Ó, minha mainha, me perdoe por tudo o que eu te fiz, eu sempre fui um menino bom, tirando as vezes que eu roubava seu trocado pra comprar dindim e colocava a culpa no Nazário, seu filho caçula que você tanto defende, eu fui um bom menino.

– Ó, Deus, me tira daqui. Eu prometo, eu juro que prometo, por tudo o que é mais sagrado, que se o senhor me tirar daqui eu viro padre. Não. Padre, não. Eu volto pra catequese, tá bom assim? Prometo também que nunca mais vou pegar goiaba do pé da casa da dona Herculana e também não jogo mais manga estragada no quintal do seu Silval, aquele chato que não deixa a gente jogar bola na rua. Eu prometo tudo, até tirar nota boa na escola, vou estudar todos os dias, acordar cedo e tomar banho toda noite. Mas me tira daqui. Minha mainha deve estar preocupada, não precisa me matar aqui não, porque quando eu sair ela vai fazer isso comigo, pode ter certeza, só me tira daqui, por favor.

Assim que olhou para cima para finalizar as poucas frases que sabia do Padre Nosso, avistou uma frestinha de luz que ainda restava daquele fim de tarde. Foi como achar ouro na Serra Pelada, petróleo em alto mar ou, no caso de Josué, encontrar a última figurinha do seu álbum de coleção preferido. Ele só precisava de um jeito de sair de lá, já que não tinha mais nem voz de tanto gritar por socorro.

O barulho da chuva só aumentava e alguns largos pingos começaram a cair por todos os lados.

Josué bem que tentava, mas não conseguia abrir a tampa do bueiro, até que, num forte impulso, conseguiu. Já com a cabeça apontada para o lado de fora, se deparou com uma movimentada avenida de asfalto e carros passando sobre ela por todos os lados, o que o fez recuar para o subsolo sombrio.

_ Vamos, Josué, você consegue. Não tenha medo, menino, vai na fé, nenhum carro vai passar pela sua cabeça. Ai, meu Deus, me ajuda, vai.

Depois de várias tentativas, muita reza, suor e desespero, o menino abriu novamente a tampa e conseguiu sair daquele local, que sequer imaginava onde seria.

Uma viatura da polícia viu o pobre lamacento e o levou para o seu bairro, a dez quilômetros de lá.

Mal sabia Josué, mas de frente para o tal bueiro, da bolinha, da carne, do Loló e do Caju estavam o prefeito, o chefe da polícia, do corpo de bombeiros, o padre, o médico, a benzedeira e a televisão, com transmissão ao vivo em busca de alguma notícia do moleque.

Com uma cinta na mão, também se fazia presente dona Jerusa, cabelo desmazelado, olhos inchados de tanto chorar e cara embraseada, como quem estava prestes a explodir.

E foi assim que Josué nunca mais se esqueceu do dia em que levou a maior surra da vida, um dia que ele sempre quis esquecer, mas tinha que se lembrar a cada pergunta:

Tatu? Tatu de quê?

 

*Claudia Rato é jornalista e autora do livro de contos Pra mim você morreu!

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Redação

A Revista "Entre Poetas & Poesias" surgiu para divulgar a arte e a cultura em São Gonçalo e Região. Um projeto criado e coordenado pelo professor Renato Cardoso, que junto a 26 colunistas, irá proporcionar um espaço agradável de pura arte. Contatos WhatsApp: (21) 994736353 Facebook: facebook.com/revistaentrepoetasepoesias Email: revistaentrepoetasepoesias@gmail.com.br

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