8ª edição – Crônica: “Quase um ano depois, ainda não parecemos prontos para o rotineiro da pandemia” – Lucas Salgueiro
Quase um ano depois, ainda não parecemos prontos para o rotineiro da pandemia
Lucas Salgueiro Lopes
Este texto não é (ou não busca ser) moralista; talvez seja generalista, mas apenas para fins didáticos. Tais aspectos apontados nele buscam refletir (sem esgotar as discussões ou tentar chegar a conclusões únicas) mais sobre o Brasil do que qualquer outro lugar, porém, sabemos que num mundo globalizado – com uma mesma espécie humana, num mesmo tempo histórico… – diversas sociedades demonstrarão comportamentos semelhantes.
Para boa parte do Brasil o contato inicial com a pandemia, na prática, veio apenas em março de 2020, com os primeiros decretos de isolamento social. Um efeito decorrente disso acabou sendo a reinvenção das nossas relações com os espaços “de casa” e “da rua”. Segundo o antropólogo Roberto DaMatta no clássico “O que faz o brasil, Brasil?”, nossa casa é percebida como um lugar singular, sendo o espaço do privado, da “nossa gente”, onde existe toda uma dimensão moral; a rua, em contrapartida, é o espaço do público, do movimento, das massas; é o lugar onde se encontram trabalhos e durezas, mas também surpresas, tentações e lazeres. Esses dois espaços, normalmente, interagem e se complementam como num ciclo.
Ninguém estava preparado para ver essa estrutura desmoronar de um dia para outro, mas como se pensava que seria algo breve, muitos puderam experimentar essa reinvenção do espaço. Ainda que o Brasil nunca tenha tido, de fato, um isolamento social em massa, vê-se que as pessoas pareciam mais suscetíveis a se manterem em casa no início. Pesquisas do Datafolha em abril de 2020 apontam que 24% dos brasileiros estavam “tomando cuidado”, mas seguiam saindo para a rua; 21% diziam estar completamente isolados em casa nesse período. Em dezembro, esses números passaram para 54% e 5%, respectivamente. Temos atualmente os menores índices de isolamento desde o início da pandemia.
Parece cada vez mais distante a fase onde pipocavam matérias sobre o que fazer no tempo ocioso em casa, romantizando as “infinitas” possibilidades de aprendizagens e entretenimentos no ambiente doméstico. Foi-se o tempo dos shows via lives, das aulas online e dos encontros por videoconferência; hoje, cada vez mais artistas fazem aglomerações, se fortalecem os movimentos – sobretudo, das escolas privadas – pela volta das aulas presenciais e seguimos com bares e festas lotadas todos os fins de semana.
Como se explica isso? Roberto DaMatta nos lembra que “todas as sociedades alternam suas vidas entre rotinas e ritos, trabalho e festa, corpo e alma…”, o que nos coloca numa constante vivência entre esses momentos. Mas o fator essencial para compreender o comportamento dessa pandemia é que “No Brasil, como em muitas outras sociedades, o rotineiro é sempre equacionado ao trabalho ou a tudo que remete a obrigações e castigos”. Por outro lado, o extraordinário é onde se coloca o fora do comum, onde podemos viver o mundo fora do sentido habitual: desde os extravasamentos do carnaval até os momentos de solidariedade em catástrofes inesperadas. Traduzindo: quando o isolamento era visto como extraordinário ainda se tinha alguma predisposição para agir diferente, fazer coisas novas – inclusive, ser solidário; com o tempo se passando (e com pouco mudando), o isolamento vira rotina, ou seja, o “castigo”. Entra em cena então, o famoso jeitinho para se lidar com isso.
Do jeitinho brasileiro todos já ouviram falar alguma vez, seja como motivo de orgulho ou como alvo de críticas. Para nosso já conhecido antropólogo, esse jeitinho serve ainda para, de forma pessoal, mediar as leis, suas aplicações e as pessoas nelas implicadas. Assim, não se precisa exterminar ou modificar as leis (muito menos cumpri-las a risca): basta desmoralizá-las um pouco; afinal, se pensa, as leis até são importantes, mas não dá pra levar tudo ao pé da letra, né?! Nesse sentido, carregamos uma máscara, mas nada demais tirar de vez em quando para respirar, não acha? Máscaras também podem ser usadas na bolsa, no queixo, na mão ou em apenas uma orelha. Da mesma forma, é belo se dizer contra aglomerações (sobretudo, dos outros), mas não há mal em se juntar com “os nossos”, mesmo em centenas, se sabemos que todos são “boa gente”. Os exemplos se multiplicam nos transportes coletivos superlotados, nos bares e nas festas que “respeitam os protocolos de segurança”, no dia a dia. Está banalizado o “meio isolamento”, o “meio cuidado” e o “(quase) novo normal”.
Como ainda seguimos no meio de uma pandemia, não possuímos uma conclusão objetiva sobre esse tema. Ainda assim, creio que um bom exemplo possa ser encontrado na arte. No “Ensaio sobre a cegueira” de Saramago, assustadoramente atual, a “pandemia da cegueira” se retroalimenta através da maldade, dos individualismos, do egoísmo e da falta de sensibilidade para com o outro. A pandemia de cegueira de Saramago se trata, afinal, da disseminação de uma cegueira moral. Spoiler: no romance, o fim da “cegueira” se inicia quando os sobreviventes passam a incorporar o cuidado uns com os outros em suas rotinas, onde a solidariedade e a compaixão voltam a se fazer presentes. Talvez nossa rotina não precise ser tão cega assim; talvez ainda tenha outro jeitinho.
Indicações & Referências:
José Saramago – “Ensaio sobre a cegueira” (livro/filme)
Roberto DaMatta – “O que faz o brasil, Brasil?” (livro)