16 horas de escritaVOCÊ ESCRITOR!

Projeto 16 horas de escrita – “O menino que vendia sonhos” – Titto Dasil

@revistaentrepoetas

O MENINO QUE VENDIA SONHOS

Canela é um menino de dez anos, que tem a pele preta, as canelas russas, o cabelo
duro e os olhos negros. Mora na favela do rio seco, numa encosta que pode desabar na
próxima chuva. Ele já aprendeu que em dias de chuva forte, se a sirene tocar, deve correr
para o abrigo que fica num colégio público perto de sua casa.
Ele é o craque do time de meninos da favela, joga com a dez, faz gol de bicicleta e
adora poesia.
Aprendeu a ler aos quatro anos com a avó, que o cria, dona Justiniana, ̈vó Niana
do Gongá ̈, mãe de santo famosa na favela, que cura espinhela caída, olho gordo e
casamentos em crise. Desde então, Canela começou a ler e não parou mais.
Nunca teve pai.
A mãe trabalha na casa de dona Marise Hoffman em Ipanema e só volta de quinze
em quinze dias, quando trás muita saudade para afagar o coração e comida para
confortar o bucho.
Lá de cima, enquanto solta a pipa ou joga um futebol com os amigos, ele consegue
olhar os tetos dos prédios mais altos da cidade.
Bolota, Betinho e Cafu são os amigos preferidos de Canela, sobem as escadarias,
correm nos becos e vielas e lambuzam os uniformes da escola.
Mas o que ele gosta mesmo na sua meninice de menino pobre, é de rimar lé com
cré, e de contar com outros olhos as aventuras da favela. Tem pensamentos infantis de
ver aquela realidade mudar.
A casa da minha mãe
O chão da gente
Os amigos do campinho

O céu daqui de casa
Sem nada, mas contente
Meu mundo, meu caminho

Os meninos adoravam, apenas Cafu, dono de uma amargura profunda não entedia
e não se deixava envolver por climas de candura.
_Não sei como gostar dessa desgraça, não temos nada pra rir nesse morro…

Bolota se derretia ao ouvir o amigo poeta e estava sempre ranzinzando com Cafu,
apesar de amigos, os dois não se bicavam.
_Você é que é muito chato Cafu. Muito legal Canela, assim que eu aprender a
escrever quero ser igual a você, fazedor de poesia.
_Ah! Eu acho legal, mas quero ser como mãe Niana, que fala com Deus e tem
poderes, disse Betinho.
_Se é assim, quando eu crescer eu quero ser da boca pra mandar no morro, disse
Cafu.
_Eles não mandam no morro, disse Bolota.
_Mandam sim, eles dão até tiro.
_Ah! Eu não acho não Cafu, eles morrem logo, nem crescem, disse Canela.
_Eu gosto quando o Canela escreve essas coisas, os barracos ficam com cor, até as
valas ficam bonitas, falou Betinho.
_Lá vem os moleques da boca, vão bora! Vão bora!
Uma vez a mãe levou Canela para fazer um exame e ele precisou dormir na casa
de dona Marise em Ipanema, antes de dormir ele ficou conversando com os filhos dela,
dois moleques amarelos feito margarina. Falou do campinho de poeira e lama, das casas
dependuradas e dos tiros.
_Lá tem bandido? Perguntou Arthur, o filho mais velho.
_Não, mas tem os moleques da boca que andam armado, falou Canela.
_Então tem, se anda armado é bandido, disse Bernardo o mais novo.
_Claro que não, a polícia tem arma e não é bandido, retrucou Canela.
_Mas a policia pode porque tem uniforme, falou Arthur.
_Meu amigo da escola falou que na favela só tem bandido.
_Isso é mentira. Falou Canela fechando a cara.
Tiraram seu sangue e lhe deram uma espetada na bunda que doeu durante uma
semana.
Minha rua é feita de lama
Que derrete quando chove
E que vira pó
Em dias de sol

Minha rua tem forma de degraus
Que cansam as pernas da minha avó
E sobe, sobe, sobe

Minha rua começa no asfalto
Desenha pra o alto
E termina no colo de Deus

As canelas russas de Canela deram origem ao seu apelido, as peladas na rua, no
campinho de barro deixava-o de pernas empoeiradas, a mãe até passava um óleo nas
pernas do guri, mas ai já era tarde, quando a bezuntação fez efeito, ele já tinha se
tornado Canela.
Na escola chama a atenção devido sua tão pouca idade e seu interesse pela
literatura, principalmente pela poesia. Tem decorado poemas de Vinicius de Moraes,
Mario Quintana e Castro Alves, sempre que esta sem atividade esta com um livro em
algum canto, alguns acham isso fantástico.
Canela não liga para tablets, celular ou computador, ele gosta de sentir a textura
das folhas, o cheiro do tempo nos livros, perceber os anos nas capas e tentar entender
a idade das palavras. Ele não sabe de onde vem isso, ele só sabe que sabe que sente.
Naquele universo, encastelado lá no alto, ele é alguém pronto para contrapor o sistema,
subverter a ordem natural daquele mundo, apesar de tão miúdo, mesmo sem ter
consciência.
Os livros ajudam a entender a mecânica daquele lugar, porque não tem pai,
porque a mãe nunca tem tempo pra ser mãe, porque os moleques da boca morrem com
pouco mais idade que ele, porque não tem água e saneamento básico, porque alguns
pais dormem bêbados na calçada, e porque em dias de tempestade alguns barracos
descem o morro com telhado e tudo e vão parar na porta dos magnatas lá no asfalto,
não entende como, mas os livros lhe dão palavras que não encontra ali.
Certa vez, quando descia pela escadaria da barreira indo para a escola, cruzou com
um moleque magrelo feito vareta de pipa, era um mulato, cabelo aparado com um
desenho na nuca e os olhos esbugalhados, andava com pinta de vagabundo, carregava
no peito uma marra de autoridade e nas costas um fuzil atravessado. Canela já o
conhecia da beira do campo de poeira e lama, quando estava a sua frente, parou e
perguntou.
_Posso te fazer uma pergunta?
_Fala aí Canela, que que tá pegando menor?

_Você é mocinho ou bandido?

Os meninos da minha rua
Sofrem de uma triste cegueira
De uma surdez tão forte
E por viverem no abismo à beira

Mesmo tão nítida sorte
Não escutam os avisos
Nem enxergam a morte
Certa vez, quando se preparava para ir dormir, num daqueles dias em que a mãe
estava em casa, um intenso tiroteio começou. Ali, jogado no chão abraçado a ela, a
estupidez daquelas balas rompiam-lhe os tímpanos e se alojavam no coração. Toda vez
que o dia seguinte a um acontecimento como esse, que era frequente, chegava, ele
desconfiava que não era mais a mesma pessoa, era uma sensação meio fantasmagórica,
mas tão real que não comentava com ninguém, achava que se tratava de uma loucura
de sua cabeça, ia dormir e acordava menos criança, menos humano.
Era como naqueles dias que acordava e no caminho para a escola junto com
Bolota, Betinho e Cafu se deparava com um corpo de um daqueles moleques da boca,
coberto por um plástico preto e umas velas ao lado, um carro de policia, e sempre,
sempre tinha uma mulher sentada próximo chorando. Do alto dos seus dez anos não
entendia, mas nesses dias ficava triste e tinha muita vontade de ler e escrever poesias.
Nessas ocasiões o morro ficava cheio de gente da televisão, era um alvoroço só, Canela
e os meninos adoravam ficar atrás dos jornalistas que estavam gravando para aparecer
na TV. Nesses acontecimentos muita gente ficava famosa, dona Araci já apareceu cinco
vezes no noticiário, dizem que ela já saiu até na primeira página de um jornal, já os
moleques que estavam embaixo do plástico, esses eram os esquecidos naqueles dias de
festa, apenas aquela mulher sentada no meio fio iria se lembrar dele.
Canela entrou em campo naquele dia querendo muito ganhar dos guris das
Guíndias, o campinho de poeira e lama ficou pequeno para as diabruras aquele moleque
de canela russa. Lançou Betinho que tocou para Cafu que deu uma trombada num
garoto parrudo do time deles, foi no fundo e cruzou na medida, qualquer um outro teria
metido a cabeça, mas Canela era diferenciado, dominou no peito, deu um lençol no
moleque, chapelou bonito, e sem deixar a bola tocar no chão bateu forte, pegou na veia,
saco! Nessa hora que os caras da TV tinham que estar ali. Deu um soco no ar, correu até
a beira do campo onde não havia ninguém e abraçou o pé de mamona que sacudiu com
o entusiasmo de um torcedor fanático, afinal, fora testemunha ocular daquela pintura.

Certa vez sua professora o chamou .
_Porque você não faz um livro artesanal com suas poesias e vende aqui na escola?
Ou até mesmo na sua comunidade.
Ela lhe ensinou como fazer.
Canela escreveu a mão as poesias que fez especialmente para aquele livro,
prendeu as folhas do jeito que a professora tinha explicado. Conseguiu fazer quinze
livros com as folhas que ela lhe dera. Vendeu todos na escola.
Com o dinheiro arrecado comprou uma resma de folhas, escreveu novamente e
fez mais trinta que vendeu rapidamente só na escola.
Ficou famoso no colégio, virou celebridade, durante o recreio algumas professoras
e alunos o procuravam.
_É você que é o Canela?
_Sim, respondia ele.
_Me falaram de você, quero comprar um livro seu. Dizem que suas poesias são
lindas.
Tempos depois, tia Marcela, a mesma que lhe deu a idéia e era sua maior
incentivadora o chamou mais uma vez.
_Parabéns Canela, sua poesia faz grande sucesso aqui na escola, acho que posso te
ajudar a melhorar essa idéia.
_Como?
_Faça as poesias e me traga, vou imprimir, tenho um amigo que vai encadernar, já
falei com ele e esta disposto a ajudar.
O garoto ficou eufórico, estava muito empolgado com aquele projeto, foi para casa
com Betinho, Cafu e Bolota apertando todas as campanhias e chutando todas as latas
que via pelo caminho, ao chegar sua avó o aguardava.
_Que negócio de livro é esse menino? E de onde tem tirado dinheiro?
Canela contou toda a história a sua avó, que também ficou muito empolgada e
feliz, ela sabia do potencial do neto e do dom que ele possuía com as palavras.

Canto a alegria sem qualquer explicação
Sem qualquer tipo de conceito
Porque ela mostra quem sou
E de onde venho

Que mostra a beleza e simplicidade
Do tudo que sou
E do nada que tenho

Canto a lindeza do feio
A limpeza do sujo
A pobreza do meio
E a realidade que não fujo

Pois sou a fruta mais bela
Dessa minha horizontal cidadela
Que pra uns é medo, violência e vela
Pra outros é casa, lar, favela

Canto a pobreza da minha terra
Para que as riquezas nos alcancem
Para que os deuses não nos esqueçam
Para que os homens não se cansem

Canto porque me faz contente
Canto pra meu passo ir em frente
E o futuro me faça gente

Mais uma vez tia Marcela o procurou com uma nova ideia para o garoto.
_Porque você não vende seus livros também no seu bairro? Contei sua história para
um amigo que é dono de uma gráfica e ele vai doar quinhentos exemplares para você
começar a vender seus livros além dos muros do colégio.
Demos pulos de alegria abraçados.

Com a ajuda de seu Benedito, seu Bené, como era conhecido, que permitiu que
pusesse uma banca feita de caixotes em frente a sua padaria, começou a vender na
comunidade após as aulas.
Em pouco tempo ficou famoso nas redondezas como o menino que vendia livros.
Vendeu todos os exemplares que ganhou em pouco tempo, com o dinheiro que
arrecadou e com a ajuda de tia Marcela encomendou outro lote de livros que também
foram vendidos com a mesma rapidez.
O sucesso do menino poeta se espalhou como rastro de pólvora.
Certa manha, num dia que não teve aula, dois rapazes da Rádio Comunidade, uma
rádio que atendia a redondeza bateu na porta de sua avó, eles queriam fazer uma
matéria com o menino poeta. Marcaram o dia e sua avó o levou até a rádio.
Canela ficou encantado com aquele ambiente, era pequeno, mas a mesa de som
os microfones, ouvir sua voz saindo na caixa que estava a sua frente parecia meio
mágico. Recitou algumas poesias e respondeu perguntas que se faz a uma criança. O
menino dos olhos pretos, do cabelo duro e das canelas russas, parecia estar brotando
do meio de sua gente. Quando falavam dele, seus ouvidos pequenos ouviam e parecia
que estavam falando de alguém que não era dali, como quando ouvia falar dos artistas
na televisão, quando a gente chora, mas é tão distante. Ele não sabia porque, mas no
seu coração, essa sensação de distância da sua comunidade, do seu habitat, lhe doía.
Era cria do morro, da favela, e sua poesia revelava isso, quando escrevia poetizando a
pobreza, desejava a riqueza ̈praqueles ̈, quando falava da morte, sonhava com a vida,
quando falava da guerra, queria a paz.
Respondeu que rimar para quem mora na favela é muito fácil, e para um professor
que ligou, e perguntou que apesar de tão novo, de onde vinha tanta inspiração e
sabedoria, disse;
_Você sabe que existe amor, nunca viu
mas conhece a dor
você sabe que não tem nada, a não ser o nome
a não ser vontade, a não ser a fome
a não ser cansaço, a não ser preguiça
a não ser a injusta distribuição da justiça.
Cresceu e continuou assim, sem entender de onde vinham essas coisas que
eclodiam num emaranhado de palavras que retratavam o seu povo favelado. Como dizia
um personagem de Ariano Suassuna no Alto da Compadecida, ̈não sei porque sei, só
sei que sei ̈.
Parou em frente ao muro que tinha umas pichações sem sentido, mas ainda
mantinham o nome da escola em letras azuis, os olhos marejaram, impossível não

lembrar do menino Canela, que sempre carregou dentro de si, em cada livro que
lançava, cada história que contava, sempre, sempre emergia o Canela, nunca deixou que
isso se apagasse.
Aos trinta anos, agora um escritor famoso, estava ali, na escola onde estudou
quando criança para ser homenageado e dar uma palestra. Estava acostumado com isso,
mas aquela seria diferente, as lembranças, as influências, tudo lhe embargava a voz.
Foi recebido pela diretora, dona Miranda, que lhe mostrou como estavam todas as
dependências, ela não sabia, mas a cada ambiente que ela o levava, em cada canto
existia uma gota de saudade. Um bando de crianças iam atrás como tietassem um pop
star. Após a visita subiu num palco improvisado com toda a escola sentada pronta para
ouvir o que tinha a dizer. Sentiu o peso do que ia falar, sabia que suas palavras podiam
mudar vidas.
Hoje já não mora mais na favela, vive num bairro nobre, possui bens, é reconhecido
por sua obra e talento, mas nunca nega suas origens, e isso se faz presente no que
escreve.
Falou para todos aqueles olhinhos com um cuidado cirúrgico, riu e chorou muitas
vezes, mostrou a importância da escola na sua formação, e dos professores na sua vida.
Após quarenta e cinco minutos, e um turbilhão de emoções, a diretora abriu para
perguntas das crianças.
Um menino foi o primeiro.
_Você gosta de vender livros?
_É claro que fico feliz quando pessoas compram meus livros, afinal, vivo disso, risos,
mas tenho uma preocupação maior, que é a de que as pessoas entendam o que estou
tentando dizer, se minha mensagem foi entendida de fato, porque acredito que isso é o
que vai tocar e influenciar quem os consome, e eu não nego que tenho essa intenção.
Quero com minhas histórias poder contribuir para que as pessoas cresçam e mudem
para melhor.
Um outro menino pergunta?
_Como faz para vender livros?
_Existem várias formas de vender livros, hoje tenho uma editora que cuida disso,
quando criança aprendi com um amigo de infância, que hoje é um fantástico professor,
e que foi quem mudou a minha vida, que como dizem por aí, o buraco é mais embaixo,
risos, que o que importa é a missão, é o compromisso de tocar no coração das pessoas,
fomentar nelas o desejo de mudar, não sou um vendedor de livros… procuro vender
sonhos e esperança.
Uma menina de seis anos pergunta?
_Quando era criança você tinha apelido.

Gargalhada geral da platéia.
Respondeu com um sorriso largo no rosto.
_Sim… Cafu.

Mostrar mais

Renato Cardoso

Renato Cardoso é casado com Daniele Dantas Cardoso. Pai de duas lindas meninas, Helena Dantas Cardoso e Ana Dantas Cardoso. Começou a escrever em 2004, quando mostrou seus textos no antigo Orkut. Em 2008, lançou o primeiro volume de “Devaneios d’um Poeta” e em 2022, o volume II com o subtítulo "O Rosto do Poeta". Graduado em Letras pela UERJ FFP e graduando em História pela Uninter. Atua como professor desde 2006 na rede privada. Leciona Língua Inglesa, Literatura, Produção Textual e História em diversas escolas particulares e em diversos segmentos no município de São Gonçalo. Coordenou, de 2009 a 2019, o projeto cultural Diário da Poesia, no qual também foi idealizador. Editorou o Jornal Diário da Poesia de 2015 a 2019 e o Portal Diário da Poesia em 2019. É autor e editor de diversos livros de poesias e crônicas, tendo participado de diversas antologias. Apresenta saraus itinerantes em escolas das redes pública e privada, assim como em universidades e centros culturais. Produziu e apresentou o programa “Arte, Cultura & Outras Coisas” na Rádio Aliança 98,7FM entre 2018 e 2020. Hoje editora a Revista Entre Poetas & Poesias e o Suplemento Araçá.

Artigos relacionados

Botão Voltar ao topo