Ivone Rosa

CARA GENTILEZA

CARA GENTILEZA

Lendo as notícias online, me deparei com a seguinte manchete:” Rio de Janeiro registra a maior sensação térmica de 2024 = 53,4º

Em dias quentíssimos assim ninguém deveria sair de casa, por opção, é claro! Eu poderia até adiar meu compromisso, mas a velha educação de não deixar nada para depois… resolvi sair.

Usei um vestido leve e uma sandália rasteirinha com várias tiras com pequeninos desenhos artesanais que deixa os pés seminus. Muito bonitinha bem verão mesmo, porém, não pensei como era inadequada para andar no asfalto durante a travessia das avenidas no centro do Rio. Além disso, o calçado decidiu me deixar a pé em plena cidade!

Na avenida Presidente Vargas, tremendo calor e eu ali com um pé só protegido ou quase. Algumas pessoas passavam e olhavam a procura de um ferimento. Tentei andar mais devagar a fim de manter a elegância. Não há beleza em arrastar os pés no chão como um “Frankenstein”. A temperatura era insuportável! Desisti dos passos lentos. Retirei a sandália arrebentada, com a esperança de caminhar mais rápido. Ledo engano. A calçada parecia uma chapa de lanchonete!  Não conseguiria nem correr.

Queimando um pé e sentindo vontade de chorar, cheguei até um prédio com marquise. Impressionante como nosso cérebro fica lento quando sentimos dor. Pensei em deixar minha vaidade de lado e atravessar para o outro lado pulando num pé só. Não consegui! O jeito foi chamar um carro por aplicativo, para piorar a situação ninguém aceitava a corrida. Cresceu o pânico e minhas lágrimas pulavam de meus olhos aumentando minha sede. Senti um enorme constrangimento em pedir para alguém comprar um chinelo de dedos para mim. A outra solução seria esperar anoitecer para o chão esfriar.

Mesmo com dor, decidi perguntar por uma farmácia, local onde, provavelmente, resolveria meu problema. Não devia estar com uma aparência boa arrastando uma perna. Foi quando um menino vendedor de água me abordou com um lindo sorriso:

– Moça quer água? – perguntou em tom suave.

-Sim, quanto é? – parei para pegar o dinheiro.

– Dez reais.

– Que isso?! É muito cara! Como você pode cobrar dez reais por uma garrafa de 500 ml?

– Está bem gelada! Eu compro o gelo, moça.

-Não, obrigada. Fechei a bolsa e continuei arrastar minha perna.

– Moça, faço por sete!

– Não, não quero. – afirmei aborrecida.

– Mas se você tá machucada, vai precisar de água, né? – sorriu

– Menino, não estou machucada! Estou sem calçado, minha sandália arrebentou! – respondi impaciente.

Ele ainda sorria, não entendi ao certo se ria de mim ou pra mim. Havia doçura em sua voz.

– Qual seu número? Indagou olhando para meus pés.

Hesitei em dizer, por que não falar? Não faria a menor diferença.

– Posso vender um? Você quer?

– O seu chinelo? Perguntei com um certo nojo.

-Não, meu do meu tio. É novinho! Custa 30 reais.

Eu estava com muito calor, com sede, e o meu estômago já gritava às 13 horas.

-Está bem, eu compro. Pega o chinelo com o seu tio.

O pequeno correu em direção a uma banca de jornal no mesmo quarteirão. No local ele apontou para mim e o jornaleiro fez um gesto afirmativo com a cabeça. O garoto voltou correndo com chinelo novo de verdade, contudo muito vagabundo de marca desconhecida. Era tão fino que parecia derreter a borracha na rua escaldante.

Calcei e agradeci. Nesse momento o rapazinho abriu o isopor que carregava e me deu um copo lacrado com água. Agradecida pela gentileza, encantada com a boa vontade do menino.  Caminhei com cuidado devido à fragilidade do novo calçado. Quando passei em frente a banca vi o seguinte cartaz:

SUPER OFERTA CHINELO 9,99

Olhei pra trás e não vi aquele “cidadãozinho tão gentil”.

Ivone Rosa

Instagram: @profaivonerosa

janeiro/2024

Ref. imagem:https://pixabay.com/pt/photos/brasil-rio-panorama-turismo-praia-4809030/

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Ivone Rosa

Professora de Literatura & Produção Textual Pós- Graduada em Gestão Educacional Roteirista formada pela Academia Internacional de Cinema-AIC/RJ Poetisa, cronista e contista 1º lugar - melhor intérprete Concurso Poesia SESC Niterói/RJ Menção Honrosa -Concurso Poesia -Duque de Caxias /RJ Participações: Antologia Diário da Poesia, Biografia Jornalista Jota Sobrinho, Diário em Poemas, Almas em prosa e verso, Coletânea Diários Escritos. Participações nos Fanzines: Poezine[Lit.na Varanda] e SerMentes - Sec.Educ.Niterói/RJ Palestrante Escola Pública sobre a Resistência da Mulher

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