Valdeci Santana

O espelho e o relógio

Hoje mesmo hei de destruir os espelhos de minha morada. E com gosto darei o mesmo fim aos relógios que eu encontrar. Pois, descubro agora que fui traído por estes objetos.

Reconheço que o espelho até que tentou refletir quem realmente eu sou, mas, eu não queria ver além do meu rosto estampado nele. Mas, covardemente, tal qual um cumplice fiel, o espelho exibiu com luzir, as máscaras que eu o trocava diante dele, preocupado em ser aceito por alguém. Talvez, eu o tenha torturado com as lágrimas que derramei diante de seu reflexo, quando a tristeza invadia minha alma, mas, estou certo de que ele mereceu, pois, me fez acreditar um dia, que minha mocidade seria perpétua.

Hoje lanço para o espelho, um ultimo olhar esguelhado, meio receoso. E vejo refletido nele, um rosto que eu conheci, em algum momento desta minha vida de poucos louros e demasiados arrependimentos, mas, que não conheço mais.

Já o relógio, sempre pulsando em meu pulso, me fez acreditar que eu era capaz de dominar o tempo, sem advertir que mais tarde, talvez eu não tivesse mais tempo para ajustar as coisas que deixei de lado. Não mencionou o fato de que o tempo não negocia. Com ninguém.

Tão assomado ao relógio eu estava, que passei a imitar a dinâmica de seus ponteiros, e andei em circulo a vida toda. Sempre competindo com as pessoas, tentando ser o primeiro a chegar a lugar nenhum. Eu me preocupava com o tic-tac de seus ponteiros que avançavam sobre as horas, sem me dar conta da importância de cada minuto. O relógio é indiferente aos momentos. Não reconhece a grandeza de cada segundo, simplesmente porque ele está interessado somente em ultrapassá-lo. E até nisso eu o imitei, e limitei meus dias somente às horas e aos compromissos ajustados nelas, sem me importar com os momentos que elas propunham viver.

Hoje não me interesso mais pelas horas, e peço ao tempo que vá devagar, pois, não tenho mais disposição para acompanhar os ponteiros.

Observo pela ultima vez o velho relógio, e vejo dois ponteiros solitários, que visitam os segundos, os minutos e as horas e não cativam nenhum deles.

E no espelho, finalmente enxergo uma mancha, que sempre estivera ali, mas, eu nunca havia notado. Uma mancha que me impedia ver quem realmente eu sou, de enxergar o luzir de minha alma. Essa mancha sou eu.

fonte da imagem: https://www.pexels.com/pt-br/foto/antiguidade-relogios-decoracao-mobilia-13922085/

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Valdeci Santana

Escritor. Autor de 4 romances: "As palavras e o homem de bigode quadrado", "A prima Rosa", "Dia vermelho" e "O rei da Grécia" Palestrante, contista e apresentador no programa #Cultura Tv Batatais

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