Enquanto a casa não se organiza: ouvidos de Olívia (por Malvólio II)
Caríssimos, ninguém pôde entender a vontade de Olívia em manter os olhos feridos, acreditem, fui o único que a conheceu de uma vez. Olívia me ouviu e me amou em todos os reveses. Sim, ela não teme as cores do amigo, a estupidez é um talento que ela não tem. Lembro-me bem dos curtos invernos que me deixavam a vida mais árdua, pesada nas costas sem poder andar.
Fiquei sentado observando a senhora Maria limpar uma tesoura por horas, deixava-a brilhar com uma espécie de pasta. Não entendi o porquê do esmero com objeto tão velho e descabido. Passou o paninho pelos móveis e se deteve no objeto, julguei que cairia nas costuras pela máquina que enfeita a sala de estar. Ela esfregava com doçura a tesoura que me parecia pesada, os pombos arrulhando na sacada, as narinas bem afiadas cosendo as ideias e os ouvidos de Olivia… Ah… os ouvidos de Olívia!
Olívia me ouviu e não foi tudo de uma vez. Maria havia me apresentado a tal cachaça, de modo que pude abandonar o regaço e observá-la pela casa. Iam-me palavras entaladas na cabeça desanuviando em encantamentos pelos corredores, enquanto Maria pôs-se a falar. Desconfiasse eu das palavras e buscasse os olhos feridos de Olívia, a frase de Maria ecoando na cabeça:
– De onde vens tens calçados botas certas?
Chegara há quase um mês e pensava no meu estado de bobo esquálido, meio sem graça. Foi quando veio a bebida, entalei a garganta e encontrei os ouvidos de Olívia. Convém dizer que imaginei Maria a cortar meus retalhos, entendi a fidelidade da dama e olhei para os calçados, estavam mesmo sujos, as unhas, encravadas. Eu, sem nada a dizer.
Minha boa Maria não veio toda de uma vez. Por isso, desejei ser o tolo e as provas só poderiam estar nos olhos perseguidos de Olívia.
(Imagem disponível em: https://pixabay.com/pt/photos/ch%c3%a1-tesoura-rosas-livro-p%c3%a9talas-2947015/)
Malvolio é bastante interessante: um homem sem tempo,
que vive no tempo de si mesmo, o tempo que seu interior dita.