Carina Lessa

Enquanto a casa não se organiza: o polegar de João Carlos

 

 

“Every day I wake up, then I start to break up

Lonely is a man without love”

– Engelbert

 

Divertir-se deveria ser a ordem do dia, com um certo atraso, é claro. Os carteiros ficaram sem trazer as correspondências e Malvólio não entendeu nada. Olívia ecoando na cabeça, enquanto ouvia de um poeta dos tempos modernos que toda mulher deveria ter qualquer coisa além da beleza, qualquer coisa que sente saudade, molejo de amor e tristeza. A verdade é que não gostava do hábito de dar presentes e não conhecia o tal significado de molejo, a indiferença foi total e, dois dias depois do Dia de Reis, ainda estava sentado no sofá da pensão quando veio finalmente o fim dos festejos. O tédio continuou e enrolou os bigodes com a ponta dos dedos indicadores, o polegar na base.

A ideia de Capital foi retomada e o machado manda lembranças. Henríquez Ureña nos entrega nossa “Atenas da América”, a imagem veste bem e desvencilha-se da metáfora como relógio. A orquestra olha de esguelha o ponteiro-batuta e exige dos pensadores um novo pronunciamento ao darem corda no relógio universal, mais especificamente em países tão vizinhos. A cidadania é mesmo questionável e o espelho não nos interessa, se não pelo modo torto de olhar o mundo. A crise e a corrupção foram coisas certas nas cidades planejadas, também a solidariedade social não para de ser posta à prova dos nove, afinal, é o mesmo que zero. Malvólio parecia mesmo indiferente, talvez por isso o pesadelo ao acordar em outras terras. Colocar roupagem nova, retirar roupagem nova, nada lhe cabia na comédia de erros. Seja o que quiserdes e dispense as visitas. Olívia feérica nos tempos presentes.

Ao sair do Largo da Carioca, caminhou como todos os perdidos. Por isso, danei a falar…

Por aqui alguns convivas andam pedindo por São Gonçalo, falam, aguardam. As barcas ainda espreitam a estátua do senhor Dom João com a promessa de Imprensa e Biblioteca Nacional. A figura imponente vê de tudo ao longe, não se dá a retirada do chapéu e, um pouco à direita, é possível ver as filiais fruto dos capitalismos mais recentes, o Rei do Mate com seus potes de pão de queijo. Se já se indaga as boas ou más razões do Rio, capital eterna do mundo, não sabemos, mas essa iguaria de Minas vem a calhar e a resistência é longa. Teria nascido no século XVIII quando as cozinheiras passaram a substituir a farinha de trigo por farinha de mandioca na feitura dos pães, na medida em que os portugueses deixavam os trigos de baixa qualidade em terras brasileiras. Vai daí também o aproveitamento dos queijos endurecidos que os senhores deixavam após o café. Coincidência de um Império que pernoitava pelos muros idealizando uma capital nova.

Malvólio sentado no sofá da pensão do Bairro de Fátima. A senhorinha que o recebeu é um primor, organiza e limpa os móveis antigos de madeira enfeixados por todo tipo de parafernalhas tecnológicas. Ele, perplexo. Aquela tela em movimento, cheia de luzes coloridas que lhe devolve os palácios de suas terras. A história e o tempo se encarregaram de tudo e, já que a vida é tão longa e a morte dona do acaso, o cinema foi boa moeda. Fez os homens tirarem férias dos pensamentos, da verdadeira lírica, dos templos e dos violinistas. A novidade, Malvólio nem imagina, está nas Mostras. O Rio de Janeiro feito mula sem cabeça, as cidades interioranas, colonizadoras dos martírios de duas cabeças. A Baía de Guanabara perde seu charme proclamado pelo inventor Gaspar Lemos. Os princípios estão escassos, o Supremo Tribunal da Justiça que se encontre, que fique e não nos deixe. Que nada! Essa observação escapa porque as máquinas estão no poder qualificando as Instituições privadas do público.

Novidade maior para Malvólio foi ir ao teatro carioca pouco antes do Natal, tudo se deu inesperadamente num arrepio do destino. Os musicistas tocavam o bolero de Ravel e o exercício de orquestração era notável. O polegar de João Carlos saltou vivo, dançarino dos palcos reinventando os modos de contar ao pé do ouvido.

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Carina Lessa

É ficcionista, poeta, ensaísta e crítica literária. É graduada em Letras, mestre e doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ. Atua como professora de graduação e pós-graduação nos cursos de Letras e Pedagogia da Unesa. É membro da Associação de Linguística Aplicada do Brasil e da ABRALIC.

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