A dívida
A dívida
Chegou ao funeral pouco depois do defunto. Meteu-se num canto e calado ficou.
Limitou-se a um aceno para a viúva.
Chapéu enfiado na rala cabeleira branca, mãos atrás das costas e seu basto bigode, que era o único traço de vaidade sobrevivente da juventude.
Olhou esguelhado para a urna funerária, onde jazia seu freguês de longa data. A rixa entre os dois era sabida. Uma dose de cachaça e um torresmo que o falecido havia “pendurado”, resultaram num conflito que se arrastara por mais de duas décadas.
O falecido era freguês assíduo de seu botequim. Também eram assíduas as cobranças em relação à pequena divida que a parte se recusava prontamente a pagar.
“Faltam a pinga e o torresmo” Advertia habitualmente o credor, quando o freguês se debruçava no balcão para saldar o consumo do dia.
“Deixa estar, pois, já até me esqueci” Reagia ele, para o divertimento dos presentes. Deixando o outro corado de raiva.
Debruça para o defunto, os olhos margeados por rugas. Estica o queixo como quem se certifica que não se tratava de uma zombaria, e conclui que não é brincadeira. Era o fim.
“O diabo que não se atreva a abrir-lhe crédito, pois, é bem capaz deste muquirana falir o inferno.” Resmunga para si.
Esfrega as mãos com impaciência. Lança um derradeiro e languido olhar ao defunto e sai.
Já na rua, vasculha os bolsos do paletó, encontra o pequeno lenço, com o qual enxuga uma lágrima que lhe desce.
fonte da imagem: https://www.pexels.com/pt-br/foto/cerimonia-evento-velorio-funeral-7317678/