LiterawebRenato CardosoSOB O OLHAR DE UM PROFESSOR

Série: “Sob o olhar de um professor” – Cap.#10 – Crônica: “Um dia agitado no sexto ano” – Renato Cardoso

Série publicada aos domingos na Revista Entre Poetas & Poesias. Instagram: @professorrenatocardoso / @literaweb / @devaneiosdumpoeta / @revistaentrepoetas

Série: “Sob o olhar de um professor” – Cap.#10 – Crônica: “Um dia agitado no sexto ano” – Renato Cardoso

Esse livro não tem a intenção de contar nada em seu tempo cronológico, nem tão pouco em ordem de importância. As histórias estão sendo contadas conforme vão acontecendo ou conforme vão sendo lembradas. A ideia é dividir o que acontece no magistério com um professor comum.

Mais uma manhã de sexta se iniciava, eu pegava às 8h20 da manhã em uma escola próxima a minha casa. Eu andava desanimado com a profissão, nunca como antes. Pensava em desistir de fato. Fatores mil eram responsáveis. Sentia-me falando para o vento. Sentia-me desmotivado.

Sempre que acordava tinha crise de ansiedade antes de sair de casa. A cabeça ficava mandando desistir e naquela manhã não foi diferente, mas, como sempre, persistia. Peguei minha mochila e fui, simplesmente fui. A vontade de retornar à casa era imensa. Tentei abstrair, buscar motivação no mais profundo amago.

Cheguei à escola, cumprimentei a todos os funcionários que passavam por mim e me encaminhei para a sala dos professores, ainda tinha 5 minutos antes do sinal bater. A minha primeira aula era na turma do segundo ano do ensino médio, dava aula de Projeto de Vida para eles. Uma turma tranquila, porém, falante, ou seja, turma comum.

A segunda aula era no terceiro ano, aula de Língua de Inglesa. Uma turma agitada, dominadora do conteúdo. Tudo que se conversava era debatido. Às vezes era difícil falar, mas, com uma certa habilidade, tudo se conseguia.

Eram 10h, o sinal do recreio soou. Era o momento que íamos para sala dos professores para poder trocar experiências ou simplesmente conversar. Toda sexta tinha contato com os mesmos dois amigos, uma jovem professora de Biologia, que no passado havia sido minha aluna, e um centrado professor de geografia.

Conversar com eles era sempre divertido, pena que durava muito pouco, somente 20 minutos. A nossa coordenadora, sorridente e motivadora, sempre nos fazia companhia. A sala dos professores era um local sereno, propício para levantar o ânimo de quem estava desmotivado.

O recreio acabou e eu teria que ir para o sexto ano. Uma turma repleta de crianças falantes, amorosas e extremamente levadas (um típico sexto ano). A aula de Língua Inglesa para eles era diferente, era em inglês, pois a escola tinha um programa bilíngue, que naquele momento chegara à turma deles.

Entrei em sala e desejei meu “Good Morning, students!” como de costume e entre um “vamos lá galerinha” e “silence, please” a aula progredia. Progredia até que bem naquele dia (confesso que tinham sextas que as coisas ficavam mais complicadas). De repente, olhei para um menino que estava sentado na segunda carteira perto da porta da sala.

Chamaremos o menino de “L”. Um garoto que sempre me recebia com um sorriso no rosto e que antes da aula começar vinha me cumprimentar e me abraçar. Naquele dia, ele não veio, continuou sentado. Notei que estava um tanto quanto sério, mas a turma estava agitada, não pude ir até ele.

Passados uns trinta minutos, olhei para “L” novamente, ele estava chorando. Aquilo me fez parar a aula imediatamente. Deixei-os fazendo exercícios e o chamei para conversar do lado externo da sala de aula. Ele me atendeu prontamente. Pedi que ele se sentasse no degrau de uma escada que tem ao lado de sua sala.

Perguntei-o o motivo do choro. Notava que era um choro doído, pois ele soluçava. Fiquei extremamente preocupado, pois gostava muito dele. Foi aí que ele me contou. Disse-me que parecia com um tio dele, no jeito de falar, de brincar, de ser. Ele gostava muito desse tio, e disse que gostava de mim. Aquilo me bateu fundo.

Tentei mostrar a ele o quanto feliz fiquei de saber que lembrava alguém que ele gostava muito. A garganta embargou, mas me contive. Chorar naquele momento não seria o mais apropriado. Conversei por curtos minutos com “L” (não podia deixar os demais sozinhos), pedi que enxugasse o choro.

O menino “L” fez tudo que foi solicitado e levantou-se. Perguntei se poderia abraça-lo, prontamente ele aceitou. Aquele abraço durou uns dez segundos, tempo suficiente para aquecer meu coração desalentado. “L” não sabia, mas despertara em mim o professor que um dia havia sido. Ali pude perceber, que além do conteúdo, existem diversas pessoinhas que dependem de nós. Afinal somos um farol.

Entramos. Tudo voltou a transcorrer em sua normalidade, mas eu estava no sexto ano, onde sempre acontecia algo. Quando olhei, vi a menina “M” chorando. Fiz o mesmo que com “L”, mas ela não queria falar o motivo. “M” era sempre meiga e adorava dizer que era minha aluna favorita. Levei-a a coordenação, que conversou com ela. Ao mesmo tempo “Ni”, comovida com a história de “M”, também chorava. “Ni” era uma menina quietinha, logo se recuperou.

Retornei pela terceira vez a aula, e para o meu espanto era a vez do aluno “P”. Ele era levado, sempre aprontava, mas gostava dele. Fiz o mesmo procedimento, o retirei de sala. Ele disse que estava com problemas. Abracei-o e disse que ele poderia contar comigo sempre que quisesse. Entramos.

Pensei que finalmente daria minha aula tranquilamente, mas que nada. Em um tom quase desesperador de minha parte, observei que a aluna “G” também chorava. Fiz diferente. Sentei ao lado dela e perguntei o motivo. Um doloroso motivo. Ela estava preocupada com um priminho, que ela gostaria muito de ver crescer.

Como “G” passou por problemas de perda na família, a mesma ficou com medo de deixar o primo que tanto amava. Consolei-a, disse que ainda tinha muito tempo pela frente e que ficaria velhinha. Ela sorriu. Ganhei meu dia. “G” sempre fui um docinho e adorava jogar Roblox.

Aí você, leitor, achou que agora tudo iria transcorrer normalmente e que eu daria minha aula, que nada! Cheguei à frente, expliquei o próximo exercício e vi uma cabecinha baixa. Uma cabecinha que nunca abaixava. Era “N”, a menina mais forte e esperta daquela sala, por isso meu espanto.

Abaixei na altura dos olhos dela, e disse o quanto me incomodava vê-la assim. Mostrei toda minha admiração por ela, pela sua determinação, carisma e inteligência. Disse que a via como alguém que gostaria que minhas filhas fossem. Ela sorriu.

A aula estava terminando, não tinha mais tempo para choros. Percebi que, muito mais que um professor, naquele dia fui um psicólogo, um pai, um tio, um ente querido. Pude ajudar, pude fazer sorrir. O tratamento dado a “L” levou a todos os outros a confiarem em mim.

O sinal bateu, a aula acabou, a chama do magistério reacendeu. Se pudesse reuni-los, agradeceria a todos, pois a troca com eles me fez renascer para profissão.

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Série publicada todos os domingo na Revista Entre Poetas & Poesias / Instagram: @professorrenatocardoso

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Renato Cardoso

Renato Cardoso é casado com Daniele Dantas Cardoso. Pai de duas lindas meninas, Helena Dantas Cardoso e Ana Dantas Cardoso. Começou a escrever em 2004, quando mostrou seus textos no antigo Orkut. Em 2008, lançou o primeiro volume de “Devaneios d’um Poeta” e em 2022, o volume II com o subtítulo "O Rosto do Poeta". Graduado em Letras pela UERJ FFP e graduando em História pela Uninter. Atua como professor desde 2006 na rede privada. Leciona Língua Inglesa, Literatura, Produção Textual e História em diversas escolas particulares e em diversos segmentos no município de São Gonçalo. Coordenou, de 2009 a 2019, o projeto cultural Diário da Poesia, no qual também foi idealizador. Editorou o Jornal Diário da Poesia de 2015 a 2019 e o Portal Diário da Poesia em 2019. É autor e editor de diversos livros de poesias e crônicas, tendo participado de diversas antologias. Apresenta saraus itinerantes em escolas das redes pública e privada, assim como em universidades e centros culturais. Produziu e apresentou o programa “Arte, Cultura & Outras Coisas” na Rádio Aliança 98,7FM entre 2018 e 2020. Hoje editora a Revista Entre Poetas & Poesias e o Suplemento Araçá.

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