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Suplemento Araçá – Vol.01 – nº01 – Dez./2021 – “OS CACOS DOMÉSTICOS EM BOLOR, DE AUGUSTO ABELAIRA” – Erick Bernardes

ISSN: 2764.3751

OS CACOS DOMÉSTICOS EM BOLOR, DE AUGUSTO ABELAIRA
Erick Bernardes

Este miniensaio constitui uma breve abordagem acerca do livro Bolor (1999), de Augusto Abelaira, uma narrativa cuja fugacidade de enredo vai na contramão dos romances que buscam “o tal” embasamento histórico e generalizante. Isto ocorre por causa do tratamento estético dado pelo artista às banalidade das ações cotidianas a servirem de enredo, na relação entre os personagens Maria dos Remédios e Humberto, a embasar o plano ficcional, revelando um estilo arguto, que preza sobretudo a micronarrativa, mas,- também, devido ao procedimento composicional pautado por referências das datas de calendário (estilo diário), quando aponta para o dia a dia mecanizado da sociedade de hoje, sob o atual contexto cultural referido como pós-moderno.

O discurso sobre a convivência entre marido e mulher se afigura, por demasiadas vezes, mediante a sobreposição de anisocronias, ou seja, a alternância insistente dos tempos narrativos, no intuito de apresentar uma interposição de narradores, ora masculino ora feminino. Entre os personagens Maria do Remédios e Humberto, surge uma terceira personagem para compor a cena discursiva, é Catarina, antigo relacionamento de Humberto, e de quem a recordação (e consequentemente o ciúme) dará o tom da complicação na trama — embora haja um certo número de personagens secundários. Entretanto, é quando mergulharmos na história do casal que seus enunciados revelam uma peculiar superimportância dada aos objetos, enquanto imagem de desejo de consumo. Apesar da obra em questão haver sido escrita já vai lá algum tempo, o valor expresso pela mercadoria se assemelha a uma fantasmagoria contemporânea, cujos indivíduos se parecem com os próprios bens que consomem, uma espécie de “coisificação” do sujeito. Conforme: “Há tantas mulheres iguais a ti por esse mundo, as que escolhem brincos iguais aos teus (…)” (ABELAIRA, 1999, p. 28). Como se vê, homens e mulheres, por meio dos personagens de Bolor (1999), são tão esvaziados de sentidos quanto os próprios objetos por eles obtidos. O valor da mercadoria é posto em segundo plano, em detrimento de uma relação fantasmática de reificação de si mesmo.

Esse empreendimento narrativo é entrecortado e muito se assemelha ao que Walter Benjamin (1892-1942) definirá como composição alegórica: estratégia de contrapor o símbolo à alegoria. O que isso significa? Se para o filósofo alemão, em Origem do Drama Barroco Alemão (1984), o símbolo carrega o sentido completo e lacrado acerca de uma ideia, a alegoria desmontaria esse símbolo, e reconstruiria uma nova percepção fluida e multidimensional, a partir dos resquícios do que outrora foi o símbolo: o passado “assombrando” o presente através dos cacos no aqui e agora. Do mesmo modo, podemos chamar de alegórica a história de amor satirizada por Augusto Abelaira, pois o que vemos na obra é um mosaico textual, sem preocupação alguma com a linearidade narrativa. Em Bolor (1999), está evidente essa alternância entre o passado e o presente, no intuito de construir a ideia daquilo que Michael Foulcault referirá como “uma peça da dramaturgia do real”, embora não importe “qual seja sua exatidão, sua ênfase ou sua hipocrisia, atravessados por ela: fragmentos de discurso carregando os fragmentos de uma realidade da qual fazem parte”. (FOULCAULT, 2003, p. 207)

Sendo assim, seguindo a esteira das palavras de Benjamin (1985, p. 143), adaptadas à nossa análise do texto de Bolor, entendemos que “a alegoria é a máquina-ferramenta da Modernidade”. Consequentemente, tabus teóricos à parte, fica-nos compreendido que o livro de Abelaira se nos apresenta mais como uma narrativa artística e satírica, permeada pelo posicionamento intelectual de uma voz autorizada, via discurso ficcional, e menos um engajamento vão, de cunho retórico-político, o qual tenderia a acarretar prejuízos estéticos à obra.

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Referências bibliográficas:

ABELAIRA, Augusto. Bolor. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1999.

BENJAMIN, Walter. Origem do Drama Barroco Alemão. São Paulo: Editor Brasiliense, 1984.

BENJAMIN, Walter. “A Paris do Segundo Império em Baudelaire” in KOTHE, Flávio,

Walter Benjamin. Ática, São Paulo, 1985.

FOULCAULT, Michel. “A vida dos homens infames” in MOTTA, Manoel Barros da. Michel Foulcault: Estratégia, Poder-Saber. Ditos e escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.

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Erick Bernardes é Mestre e Especialista em Estudos Literários pela Faculdade de Formação de Professores da Universidade Estadual do Estado do Rio de Janeiro – FFP/UERJ.

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