Valdeci Santana

Na minha época

Na minha época.

Nem bem dobra a esquina, em seu habitual paletó cor de café com leite, folgado demais no seu corpo arqueado e seco, o velho Brasil mergulha em suas ranzinzices. Nunca um humor implicante encontrou adequado asilo, como no espirito daquele sujeito. Enlaçada ao seu braço frágil, dona Maria, que conserva ainda seus ares joviais, se prepara para a peleja diária, a de aparar as mesquinharias do marido.

—Vê lá Maria?

E estica o pescoço para as crianças que brincam nas poças enlameadas, esquecidas pela ultima chuva.

—As crianças de hoje em dia portam-se quais verdadeiros animais! No meu tempo éramos mais civilizados, veja só!

—O que diz o senhor, Brasil? Eu bem me lembro de vê-lo enturmado com seus irmãos, se embrenhando nos brejos atrás de canários. Parecia um leitão!

—Ora! Mas, eram brincadeiras compatíveis com o ambiente rural! Na cidade os modos são outros.

Esquecidas as crianças, o pescoço se estica para um casal, que abraçado diante do alpendre, trocam mutuas caricias.

—Por nossa senhora! Olha só que indecência. Este país tornar-se-vai uma Sodoma! Onde foram parar os morais de nosso tempo?

—Homem, homem! –Replica dona Maria, sem disfarçar um risinho sarcástico que lhe rasga o canto do lábio. —Não se lembras do quão assanhado era o senhor? Não me dava sossego. Pedia demasiadas bitocas. Parecia um gato a se esfregar de tempo em tempo.

—Mas, era diferente! –Replica, conservando a expressão colérica no rosto amarrotado. —Minhas intenções eram genuínas, dignas de um apaixonado respeitoso. Agora, com estes casais de hoje, a coisa debanda para safadeza, isso sim.

Brasil via mal em tudo. Mesmo quando algum gesto de cortesia lhe era atirado, como na ocasião em que um rapaz, lhe cedeu lugar no assento do ônibus. Sem dar braço a torcer, disparou:

—Também, com o vento que bate aqui, capaz de trazer toda poeira da cidade para um só pulmão, não me admira que o sujeito deu-me lugar. Aposto que foi para fazer troça!

Dona Maria, conhecedora das implicâncias do marido que via erro em tudo, respirou profundamente, quando um bêbado, trançando as pernas, se destacou. O rosto do velho Brasil se ruborizou de tal forma, que trouxe preocupação à esposa.

—É o fim dos tempos! Desmancha logo este mundo e preparem outro sem data de validade, pois, a deste aqui se excedeu.

—Deixe de ser implicante homem!

—Implicante? Eu? Ora! Veja só! Tenho ao lado a defensora da vadiagem. Onde já se viu um sujeito tão desocupado, a andar em tal estado? Somente neste país mesmo se permitem tal.

—E aquele seu primo? O Luís? É português e tanto fez com a bebida que a mulher o deixou. E o Aparício? Seu irmão? Não se lembra do estado em que o encontramos semana passada? Estava tão em desequilíbrio que quase me derrubou ao tentar cumprimentar-me.

—Primeiro que o Luís teve lá seus problemas de nervos, pois, a mulher era uma implicante sem meios, o remédio o miserável encontrou na bebida. Segundo que o Aparício tinha sim, tragado um gole o outro, afinal, ninguém é de ferro. Mas, se a senhora quase foste ao chão, é justamente por fraqueza nos ossos. Eu sempre lhe advirto de que estas drogas de hoje em dia, de nada servem, exceto para enfraquecer a saúde e, por conseguinte cativar um enfermo.

Percebendo que naquele dia o Brasil estava demais, dona Maria encurtou o passeio e, dizendo-se indisposta, retornaram-se ao lar. E, num impiedoso e derradeiro deleite, o velho Brasil espichou o pescoço para a vizinha que se debruçava à janela.

—Um dia destes, juro que logro para outra freguesia! Onde não tenha tanta gente abelhuda, a cuidar da vida alheia. No meu tempo não havia tanta mesquinharia.

Fonte da imagem:https://www.pexels.com/pt-br/foto/afeicao-carinho-simpatia-anonimo-5745893/

 

 

 

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Valdeci Santana

Escritor. Autor de 4 romances: "As palavras e o homem de bigode quadrado", "A prima Rosa", "Dia vermelho" e "O rei da Grécia" Palestrante, contista e apresentador no programa #Cultura Tv Batatais

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