João Rodrigues

O vendedor de picolé

Solitário na grande abóboda azul, o sol estava implacável. Nesse início de tarde, as nuvens resolveram se retirar, pois também não aguentaram a fúria do astro-rei. O asfalto tremia, e a cidade fazia a sua sesta.
Em pleno outubro, quando o sol parece estar léguas mais próximo da terra, alguns estudantes caminhavam apressadamente por debaixo das marquises, procurando uma sombra qualquer na tentativa de fugir da cólera do sol. Uns colocavam os livros sobre a cabeça a fim de reduzir o calor, outros enfrentavam-no abertamente.
Em frente a um colégio, alguns alunos se aglomeravam, esperando o portão abrir. Por felicidade, umas poucas árvores davam-lhes abrigo e alívio. De certa forma, o excessivo calor reduzia um pouco.
Eu, que ia passando por ali e avistei um filho de um amigo que não o via fazia tempo, resolvi parar pra conversar um pouco. Sentei-me na mureta e fiquei de papo com o rapazinho. Vez ou outra chegava um professor, o vigia abria o portão e ele entrava. Alguns alunos protestavam, querendo entrar também. “Só na hora certa!”, gritava o funcionário, e fechava o portão novamente. Uns reclamavam do calor; outros, da sede, mas o homem era inflexível.
Um vira-lata passou com uma queixada de boi na boca. Vinha do mercado. A gritaria foi geral. O cachorro acelerou a macha, com medo dos gritos, ou talvez com receio de que fossem tomar seu almoço. Sumiu na próxima esquina. Uma velha não muito boa do juízo desfilava pela calçada da igreja com uma sombrinha protegendo-se do sol, que também foi alvo da molecada. Ela deu uma olhada em direção aos meninos e continuou sua caminhada em direção a lugar nenhum. Pouco depois, lá estava ela de novo. E ninguém gritou mais.
De repente, vi a meninada se agitar. Alguns metiam a mão no bolso, conferindo as moedas; outros abriam a mochila e dela tiravam uma nota qualquer. Parei a conversa para observar o que se passava. Era o vendedor de picolé que vinha chegando.
Mesmo sob o sol escaldante, lá vinha o Pirital – era este o nome dele –, em sua caminhada lenta, despreocupada, empurrando seu carrinho em direção à escola. Com a pele curtida pelo sol, o astro celeste parecia não o incomodar. Eram parceiros de longa data.
Mal parou e foi cercado pela meninada, que queria um picolé para esfriar a garganta, que estava feito uma brasa. Não tinha pressa. Recebia o dinheiro, passava o troco, o que causava uma certa impaciência nos demais. “Se apressa, Pirital!”, gritava um. “Pô, Carlinho, por que tu não traz dinheiro trocado, cara?”, protestava outro. Pirital pedia calma, ria e continuava seu ofício.
Também tive vontade de um, mas não me atrevi a concorrer com os estudantes, que pareciam um enxame numa colmeia repleta de mel. Além do mais, não era justo. Eles estavam ali, esperando, fazia um tempão. E se o meu picolé fizesse falta pra algum deles? Resolvi esperar.
Mesmo assim me aproximei. Quando ele levantou a tampa, vi o tapete colorido e nevado no fundo do carrinho. Não resisti!
– Este aí meio amarelado, é de quê? – perguntei.
– De manga – respondeu enquanto passava um troco.
– Pensei que fosse de buriti… – falei com uma certa nostalgia.
– Mas tem. Você quer um?
– Quero! – quase gritei.
Um menino olhou pra mim, como se dissesse que havia chegado primeiro. Olhou dentro da minha cara. Me reconheceu e disse: “E aí, fessor!”. Com um gesto, mandei-o que passasse à minha frente. Ele se recusou, dando-me a vez. Agradeci.
Pirital tirou um picolé e me entregou, rindo, como era o jeito dele.
– Este é de buriti – falou orgulhosamente.
Continuou atendendo os meninos sem se preocupar em receber o meu dinheiro. Talvez confiasse nos meus cabelos brancos, ou talvez tivesse escutado o menino me chamar de “fessor”. Paguei-o, e o troco eu o dei ao garoto que me cedeu a vez. Ele me agradeceu com um largo sorriso.
Estava geladinho. Levei-o à boca. E não pude impedir de virem até mim as velhas recordações que ficam em algum canto de nossa memória, pisoteadas pelo caminhar dos anos e enferrujadas com as águas de tantas invernadas e o sol de tantos verões, mas que logo saem saltitando nas primeiras oportunidades.
Lembrei-me de quando eu também estudava naquela mesma escola e, feito uma criança que espera ansiosamente a chegada de papai Noel, ficava ali, aguardando impaciente o vendedor de picolé na expectativa de comprar um de coco queimado ou de buriti, o meu preferido.
E ainda era o mesmo vendedor!
O momento era mais que especial. E aquele picolé, que tive vontade de guardá-lo como se fosse um troféu, me fez retroceder algumas décadas e me sentir de novo menino. Por um momento, cenas daquela época se soltavam das folhinhas do calendário que ficava preso à parede da cozinha lá de casa e dançavam na minha frente.
Sentei-me na mureta e, enquanto me deliciava com meu picolé de buriti, fiquei observando o vendedor cercado de meninos. E eu no meio deles, agora um pouco mais crescido, mais velho mesmo, com os cabelos desbotados pela contagem implacável das primaveras. Ainda bem que nossa alma não envelhece!
Os estudantes, agora refrescados, conversavam alegremente, com a garganta aliviada da secura.
A sirene gritou, informando que a hora de entrar era chegada. O vigia escancarou o portão. Os alunos entraram em disparada. Pirital retirou-se com seu caminhar lento em busca de mais um freguês. E eu fiquei ali, imóvel, feliz.
E pela primeira vez na vida percebi a tamanha importância de um vendedor de picolé.

 

Imagem: https://pixabay.com/pt/photos/homem-vendedor-de-rua-picol%c3%a9s-6569599/

 

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João Rodrigues

Nascido em Riacho das Flores, Reriutaba-Ceará, João Rodrigues é graduado em Letras e pós-graduado em Língua Portuguesa pela Universidade Estácio de Sá – RJ, professor, revisor, cordelista, poeta e membro da Academia Ipuense de Letras, Ciências e Artes e da Academia Virtual de Letras António Aleixo. Escreve cordéis sobre super-heróis para o Núcleo de Pesquisa em Quadrinhos (NuPeQ) na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul.

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