Cristiano Fretta

Canta, Elza!

A morte, como processo fisiológico, é extremamente democrática. Ela desliga o corpo e o transforma em passado, independentemente de quem seja o indivíduo. A morte nos faz lembrar que, apesar de tudo, somos humanos e que todo o resto não passa de perfumaria.

Passados os ritos fúnebres, vem a etapa em que a ausência da pessoa passa a ser a força motriz para a construção de um imaginário quase mitológico em torno do falecido, atravessado impiedosamente pela memória. No seio da família que perdeu um ente querido, a cadeira vazia, o armário com as roupas, os objetos pessoais podem virar itens praticamente sagrados de respeito e devoção àquele que já partiu.

No caso de pessoas cuja vida e obra extrapolaram a importância familiar, a construção dessa memória é ainda mais ampla e permanente. Elza Soares nos deixou no último dia 20 de janeiro, e há uma certeza: para além da falta que sua ausência imprimirá nos seus familiares e amigos próximos, Elza também deixa – ou pelo menos deveria deixar – uma nação de luto, com a responsabilidade de saber reverenciá-la eternamente. A cadeira vazia deverá ser observada não somente pela sua família, mas também por todo um país. Nesta cadeira haverá a ausência e a memória de uma mulher de infância muito humilde e que tinha 10 irmãos, nascida na favela de Moça Bonita em 1930, no Rio de Janeiro. Também haverá ali sentada uma menina que aos 12 anos foi obrigada a abandonar os seus estudos e se casar com um amigo de seu pai que, inclusive, já havia tentado abusar dela. Neste casamento, houve todos os tipos de violência. A cadeira vazia também dirá que aos 15 anos o segundo filho de Elza morreu de fome, já que o marido estava doente, acometido por uma tuberculose, e não havia alimento em casa. Triste por tantas tragédias, a cadeira vazia também falará sobre o ano de 1950 e o sequestro de Dilma, sua filha recém-nascida, que seria encontrada apenas 30 anos depois. A cadeira vazia também sentirá a necessidade de contar o seu conturbado casamento com Garrincha, mas agora talvez seja de bom grado lembrar um pouco dos bons momentos dessa mulher incrível, porque em bem verdade ainda faltaram muitas tragédias para a cadeira vazia falar.

Sem titubear, a cadeira olhará para o Brasil e dirá que Elza Soares foi uma das maiores cantoras da música brasileira, autora de 34 discos, que passaram pelo samba, jazz, música eletrônica, hip-hop e funk. Em 1999 foi eleita pela rádio BBC de Londres a cantora brasileira do milênio. Elza sempre será presença não só por sua carreira de sucesso e seu incontestável talento vocal, mas também pela sua figura gigantesca de mulher negra brasileira que nunca se furtou em afrontar a nossa tacanha sociedade e marcar, por meio de sua voz, o seu lugar na história da nossa cultura: a posteridade. Canta, Elza! Nós vamos e precisamos te ouvir.

 

Imagem: https://pixabay.com/pt/photos/audio-show-microfone-m%C3%BAsica-2941753/

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Cristiano Fretta

Cristiano Fretta é mestre em Letras pela UFRGS, músico, compositor e professor de Literatura e Língua Portuguesa em escolas privadas de Porto Alegre. É autor das obras "Chão de Areia", "Tortos Caminhos", "A luz que entrava pela janela" e "Crônica de um mundo ausente". Também colabora com as revistas digitais Parêntese, do grupo Matinal Jornalismo, Passa Palavra e com o jornal Extra Classe. Nasceu e mora em Porto Alegre

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