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Suplemento Araçá – Vol.02 – nº04 – Out./2022 – Artigos & Ensaios: “ALGUMAS PALAVRAS SOBRE A SEMANA DE ARTE MODERNA DE 1922 E O MODERNISMO BRASILEIRO” – Juliane Elesbão

ISSN: 2764.3751

ALGUMAS PALAVRAS SOBRE A SEMANA DE ARTE MODERNA DE 1922 E O MODERNISMO BRASILEIRO
Juliane Elesbão[1]

No mês de fevereiro do ano de 1922, entre os dias 11 e 17, ocorria no Teatro Municipal de São Paulo um dos eventos que marcaram significativamente o cenário literário brasileiro do século XX: a Semana de Arte Moderna. Tal evento é simbolicamente importante pelo movimento artístico consagrado como Modernismo, propondo uma nova visão estética vinculada à independência cultural preconizada na produção de artistas como Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Menotti del Picchia, entre outros.

O evento esteve envolto por polêmicas e por uma recepção ambígua por parte do público. Entre as polêmicas, temos a crítica mordaz que o escritor Monteiro Lobato fez às pinturas de Anita Malfatti em 1917, alguns anos antes da Semana. A pintora havia montado uma exposição depois de ter chegado da Europa, sob a influência das vanguardas europeias, mas teve seu trabalho artístico ferrenhamente criticado, concluindo Lobato que imagens distorcidas eram resultantes de uma paranoia. Essa tensão acentuou os conflitos entre os modernistas e os defensores da arte clássica, tradicional.

Outro momento polêmico ocorrido no próprio evento foi a declamação feita por Ronald de Carvalho do poema “Os sapos”, de Manuel Bandeira. O poema é claramente uma crítica aos parnasianistas e ao seu modus operandi poético, como se observa nestes últimos versos: “Clame a saparia/Em críticas céticas:/Não há mais poesia,/Mas há artes poéticas”. Ronald declamou-o em meio às vaias da plateia, já que se percebia nitidamente a ridicularização da poesia parnasiana e a consequente mostra dos princípios modernistas, que não caíram de imediato no gosto do público.

Ainda assim, é inegável a importância da Semana de 22, realizada à época em comemoração ao centenário da Independência do país. A intenção era propor uma forma de fazer arte livre das amarras do rebuscamento e do preciosismo linguístico, distante da arte extremamente formal, que olhasse de forma crítica para a realidade brasileira no intuito de retratar suas nuanças sociais, políticas, culturais, etc. Assim, temos uma arte voltada para o experimentalismo, para a inserção do negro na arte, para a valorização da nossa História e da nossa formação étnica, contemplando os vários povos que formaram a nossa nação, bem como o cotidiano do brasileiro, evidenciando as favelas, o operário, a língua portuguesa falada no dia a dia, o negro, nossa flora, especialmente, entre outros elementos. Ademais, vale destacar os movimentos da Poesia Pau-Brasil e o Antropofágico, nascidos dos manifestos elaborados pelo escritor Oswald de Andrade, que defendia uma poesia de exportação, uma poesia brasileira que utilizasse os elementos estrangeiros, assimilando-os, digerindo-os, para gerar uma poesia genuinamente nacional e que fosse “exportada”, que ultrapassasse os limites nacionais, visto que “[a] poesia anda[va] oculta nos cipós maliciosos da sabedoria. Nas lianas da saudade universitária”. Anos mais tarde, por volta da década de 60, tais questões seriam reencenadas pelo movimento Tropicalista, encabeçado por Caetano Veloso. A partir de então, a Tropicália se apropria de pressupostos modernistas para pensar uma nova identidade cultural brasileira, sobretudo lançando mão do conceito de antropofagia pensado por Oswald de Andrade.

Logo, no ano em que estamos, 2022, comemoramos o centenário da Semana de Arte Moderna, ponto de partida para um movimento artístico questionador, inovador, polêmico, que trazia consigo uma proposta de renovação estética já necessária para aquele momento, a considerar todo o processo de urbanização, migração de estrangeiros e industrialização pelo qual o país passava e que não se coadunava com o pensamento conservador e ainda preso ao passado que insistia em se manter. Para os modernistas, o Brasil precisava ser pensado e representado a partir de suas múltiplas expressões e sem negligenciar suas múltiplas facetas.

Tupi, or not tupi that is the question”.

Assim, com a emergência do Modernismo no Brasil e a influência das vanguardas europeias sobre o referido movimento, propagou-se pelo país uma renovação da linguagem literária, com a renovação dos temas e das técnicas do que se queria como nova poesia, a poesia de exportação. Assim, destacamos, por exemplo, a síntese, materializada nos poemas curtos de Oswald de Andrade, como observamos abaixo:

Escapulário

No Pão de Açúcar

De cada dia

Dai-nos Senhor

A poesia

De cada dia. (ANDRADE, 1978, p. 75)

No poema acima vemos a grandeza da natureza brasileira metaforizada pelo Pão de Açúcar, que serve como mote para a própria poesia que nos deve ser dada a cada dia. O poema concentra em si essa tensão intertextual, marcada pelo tom metalinguístico e religioso, bem como encapsulada nessa síntese poética que revela certa consciência criadora nacional. Assim, temos os poemas curtos, que ficariam conhecidos como poemas-pílula, poemas-minuto, a corresponder com os princípios estéticos expressos nos manifestos: “Contra a argúcia naturalista, a síntese” (ANDRADE, 1971, p. 77). O leitor depara com uma “estética do desvio” (MENDONÇA; SÁ, 1983, p.42), que vai contra a elaboração descritiva do naturalismo, por exemplo, o rebuscamento vocabular do simbolismo, entre outros aspectos de estéticas anteriores.

Sabemos que os ideais de renovação estética promovidos pelos artistas do Modernismo brasileiro resultaram em desdobramentos que se mostrariam em movimentos artísticos posteriores, como o Concretismo e a Tropicália (como já apontado anteriormente). A própria linguagem trabalhada de forma condensada e o coloquialismo explorado por Oswald de Andrade foram elementos influenciadores diretos do trabalho poético e musical de Arnaldo Antunes, que chegou a afirmar tal dado em uma entrevista realizada num evento chamado Esquina da Palavra. Um exemplo disso pode ser visto no poema abaixo, de Antunes, que também explora temas ligados ao cotidiano:

Como vai?

A pé. (ANTUNES, 1986, p. 56)

O Tropicalismo, por sua vez, lançou mão do conceito de antropofagia reelaborado por Oswald, amalgamando o elemento estrangeiro, sobretudo a guitarra elétrica e o estilo do rock norte-americano, e o nacional, numa espécie de “canibalismo”. Caetano Veloso – que chegou a musicar o poema “Escapulário”, citado anteriormente – revelou essa ponte feita com a antropofagia de Oswald de Andrade:

a ideia do canibalismo cultural servia-nos aos tropicalistas como uma luva. Estávamos “comendo” os Beatles e Jimi Hendrix. Nossas argumentações contra a atitude defensiva dos nacionalistas encontrava aqui (no manifesto) uma formulação sucinta e exaustiva. (VELOSO, 2008, p. 248)

Assim, vemos que a antropofagia foi tomada como alicerce teórico e ideológico para o movimento tropicalista, a fim de consolidar a empreitada pela busca de uma identidade artística nacional e retomar a questão da influência estrangeira na cultura brasileira. De todo modo, a Tropicália buscou ultrapassar os limites do Modernismo, ao dar continuidade ao processo de rompimento das estruturas artísticas e ideológicas vigentes.

Diante do exposto, reforçamos a comemoração do centenário de um evento importante para a seara literária brasileira, culminando no Modernismo que foi muito mais que um movimento artístico-literário, visto a promoção de uma consciência do nosso atraso em várias instâncias (educação, cultura, política, sociedade), da tentativa de compreensão da dinâmica social do Modernismo pautado num modo de ação coletiva que observa e avalia a cultura brasileira, da reflexão sobre a aliança entre intelectuais/artistas e o Estado, sobretudo no que concerne à disputa de ideais a serem definidos, bem como às políticas públicas voltadas para a cultura e a educação. Em síntese, podemos concluir que o legado modernista foi o da emancipação da singularidade cultural do Brasil, com o objetivo de nos desprendermos do senso comum e de nos apegarmos à nossa capacidade crítica.

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REFERÊNCIAS

ANDRADE, O. de. Poesias reunidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971. Disponível em: https://monoskop.org/images/3/39/Oswald-de-andradeObras_Completas-vol7.pdf. Acesso em: 03 fev. 2022.

________________. Poesias reunidas. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

ANTUNES, Arnaldo. Psia. São Paulo: Expressão, 1986.

DAFFARA, Elaine; KEBIAN, Ingrid. A palavra certa de Arnaldo Antunes. 2002. Disponível em: http://www.arnaldoantunes.com.br . Acesso em: 03 fev. 2022.

MENDONÇA, A. S. L.; SÁ, Álvaro de. Poesia de vanguarda no Brasil: de Oswald de Andrade ao poema visual. Rio de Janeiro: Antares, 1983.

VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo. Companhia de Bolso, 2008.

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[1] Doutora em Literatura Brasileira (UERJ) e Mestra em Literatura Comparada (UFC).

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