Carina Lessa

Roleta Russa

 

– What happens in Vegas stays in Vegas.

Cochilava e vinha a imagem da encantadora moça comendo o corpo todo. Bota preta e cano alto. Salto enorme. Lábios vermelhos cochichavam e gemiam em seus ouvidos enquanto segurava uma taça de champanhe na mão esquerda.

– Amor, sou tua doença e tua graça. Mande o beijo agressivo nos meus seios que eu te aguento. – A musa parecia dizer com olhar raivoso e oferecido.

Continua:

– O romance é péssimo, mas apareço nos teus piores crimes. Olhe pela janela, amor, porque a minha vingança é fazer parte do romance ruim que você me escreve. Segure o revólver, a cartada é tua. Anda logo, fiquei entediada.

Sarcástica, deita no chão com a perna direita dobrada e a esquerda esticada. Desliza as mãos pelos seios e já recebe algumas notas na calcinha. Os olhinhos bem delineados esbarram no rosto de Eduardo, meio indignado e travesso. Vão trocando sensações tinta a tinta, as unhas bem grandes arranhando tudo que é carne e líquido, umedecendo os lábios carnudos. Levanta-se. De costas, com os longos cabelos deslizando o dorso, parece cochichar: Please, my toxic love. Are you going up stage? Life is beautiful!

(Eduardo olha confuso e excitado com o volume aparente na calcinha)

Veja o professor Eduardo. Acaba de colocar o tradicional terno Bloomingdale’s, camisa de colarinho abotoado. Gravata impecável. Nem parece aquele homem meio medroso e deprimido. Parou de pedir desculpas a Deus, enfim… Nada de implorar pelo tiro de misericórdia. Logo avisam-no sobre o adido militar. Já passa das vinte três horas… Além de estar cansado de sujeito tão enfadonho, lembra da noite anterior esperando ansiosamente reproduzi-la. A notícia de visita inesperada o deixa claustrofóbico. Uma noite e o coração vai explodindo em cores pela boca. Não pensava em casamento, mas o agradava pensar naquela espécie de deusa da revista belorizontina. Estava pronto para despetalar cada confidência em seus ouvidos. Cochichos discretos de amizade. O fato é que a visita cansativa do adido militar causava tédio e calafrios.

A campainha toca. É o adido. Entra na sala sem lhe fitar os olhos. Já vai falando sobre novos projetos. Educadamente, Eduardo respira fundo e pergunta que bons ventos o trazem.

– Você estava de saída? – ele pergunta sem se importar e já se esparramando no sofá. Esmiúça todo o corpo de Eduardo.

Segue dizendo:

– Um amigo meu pede que se lance uma peça. Estou pensando em aceitar… vim pedir tua opinião, o que acha?

Eduardo sorri apertado como quem não está nem aí para aquela conversa fiada toda. Pergunta enquanto olha ansioso o relógio:

– E sobre o que é?

O adido passa a mão pelo bigode sem lhe responder.

– Sabe como é. Desde sempre sou chegado a uma performance, não resisti. Estou doido pra ver no que dá. Deixo o texto e você me diz…

Eduardo fica pensativo. Logo agora que ele foi se deixando sair das quatro paredes. Caminhava livre de quando em vez por aí. Descia o elevador, esquecia daquela gente chata e careta. Agora, não para de pensar no que será que o adido está aprontando. Promete ler com atenção e o outro sai sem dar muita explicação.

Não demorou muito tempo para Eduardo acender as luzes e receber o algoz. Fechou-se no escritório e tomou lugar à mesa. O espaçoso do adido já esparramado na cama dizendo que precisava descansar.

“Pelo amor… duzentas páginas?! Ele só pode estar brincando… ” A letra está horrível! Quem escreve à mão hoje em dia? Mergulhou os olhos no papel, precisava se livrar daquilo o mais rápido possível. O drama se dividia em três atos à moda antiga. Já era quase meia noite e mal conseguia se concentrar na leitura enfadonha. Olhou ferozmente o adido como quem pudesse matá-lo só com uma baforada quase de touro. Nem sabia se se tratava de uma peça ruim. Da cabeça, não lhe saía aquela cinta-liga e os olhinhos apetitosos… para dizer a verdade, Eduardo nem se recordava do nome da moça, talvez nem tenha perguntado. O corpo estava rasgado de vodca e whisky, foi misturando tudo. Por fim, percebeu que acabaria perdendo a festinha particular.

Não bastasse toda a deselegância de deitar na cama sem permissão, o adido militar se levantou rapidamente, talvez lhe adivinhando a letargia, pegou da papelada e saiu da mesma forma que entrou. “Que raiva! Agora já perdi o horário.”

Foi à janela carregando a taça de vinho que já esvaziara umas boas vezes, a rua deserta. Um tec-tec esquisito na porta chama a atenção. Eduardo avança em colarinho meio desgrenhado. Um homem esquisitão e alto entra tagarelando em francês. Não entendia nada tamanha rapidez e tiques na fala.

– Quem é você? O que faz na casa de alguém à meia-noite?

– Não imagina? Quem se daria a tal trabalho em pleno fim de semana? Não enxergou o distintivo?

– Ainda não entendo, quer se explicar? – Eduardo fala incrédulo.

– Sou da polícia, cara!

– E eu te ajudo em quê? Não ouvi ou presenciei nada por aqui.

O homem vai arrastando Eduardo pela porta afora.

– Não entendo… Mas do que eu sou acusado?

– O senhor é acusado de perder no poker e não deixar a grana. Na verdade, a indignação geral é a sua incapacidade de perceber os blefes e se candidatar a tantas jogadas. Há blefes e blefes… agora, você foi convocado a dar satisfação. A quantia devida é coisa pouca, na verdade, mas ninguém aceita tamanha incapacidade de jogar.

– Perdoe-me, senhor. O que eu tenho a ver com isso? Eu pago a quantia, não preciso de dar mais conversas aos porcos. Vocês só podem estar brincando… (Eduardo reponde sem lembrar de nada sobre o relato)

O homem dizendo tudo aquilo e ele observando a infinidade de armas na traseira do carro à frente, não conseguia contar. Pensava ser uma brincadeira. Concluiu, enfim, que erraram o endereço.

– Ha, Ha, ha! riu o homem esquisitão. Pensava em sair como um péssimo jogador, sem pagar, desejar uma moça, trepar talvez com ela e, ainda, julgar-se um ótimo leitor do ser humano?

Ele ficou boquiaberto ao ouvir sobre a mulher que enredara seu tesão mais escondido. Subiu uma força tão corrosiva que quase caíra em corpo convulso. Veio um tremendo enjoo. Não era possível, como aquele homem saberia de narrativas tão pessoais? Seria um blefe? Eduardo perdeu-se e, quando finalmente olhou de relance, já sentira um saco cobrindo o rosto com força. O corpo lançado no porta-malas do carro.

Eduardo desmaia e só acorda quando o carro para num solavanco no momento em que escuta uma música bem alta. Reconhece: The Black Eyed Peas.

Girl, I travel ’round the world and even sail the seven seas
Across the universe, I go to other galaxies

– Chegamos, cara. Sai daí… Bora.

Eduardo é arrastado até uma sala cheia de espelhos e armas de fogo de todo tipo. De repente, o susto. Não havia explicação para a cena. A mulher entra. A porta se fecha feito mágica. A musa cintila e fecha uma navalha guardando-a entre os seios. Há pouca iluminação no local e tudo fica ainda mais confuso diante do jogo de espelhos. Ele tenta alcançá-la, estica o braço meio sem energia. Não se sabe se é ilusão feito fumaça. Uma mesa com rodinhas lotada de revolveres se aproxima misteriosamente. O homem esquisitão oferece uma delas a Eduardo que é induzido a disparar, sem muita escolha. A mulher de frente encarando toda sensual.

– Não é de três que você gosta, amore? Vamos, estou aguardando a minha vez. Quero saber onde está o melhor drama.

Sem cerimônia, pálido, ele puxa o gatilho contra a cabeça.

 

Mostrar mais

Carina Lessa

É ficcionista, poeta, ensaísta e crítica literária. É graduada em Letras, mestre e doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ. Atua como professora de graduação e pós-graduação nos cursos de Letras e Pedagogia da Unesa. É membro da Associação de Linguística Aplicada do Brasil e da ABRALIC.

Artigos relacionados

Botão Voltar ao topo