Renato Amaral

Crônica Janelas da Alma

Imagem de Sathish kumar Periyasamy por Pixabay

Janelas da Alma

 

Recentemente tive contato com uma pessoa que esteve internada com Covid durante algumas semanas, incluindo o CTI. Durante nossa conversa em que contava os dias terríveis e de muito aprendizado pelo qual passou acabou me confidenciando um fato. Durante esse período penoso em que chegou a pensar que não sairia mais viva do hospital, disse que criou alguns mecanismos em sua cabeça para tentar manter a sanidade mental. O mais marcante de todos foi o de tentar identificar os profissionais que cuidavam dela e de outros pacientes nos leitos dentro da unidade. Devido à vestimenta que incluía capuz, touca, óculos, luvas e máscaras, somente os olhos ficavam visíveis. E foi por eles que passou a associar os guerreiros da Linha de frente. Mesmo impossibilitada de se comunicar sabia sempre quem vinha cuidar dela, observando fixamente os olhos. Foram vários profissionais e em muitos dias e plantões. Dentre eles tinha a de olhos puxadinhos, a dos olhos sorridentes, uma de olhos sinceros, um rapaz dos olhos compenetrados e concentrados, um senhor de olhos preocupados. Uma senhora que tinha rugas perto dos olhos (e pelos seus cálculos já deveria estar aposentada), tinha também um senhor alto e forte com olhos de esperança, tinha a olhos de bênçãos que sempre abençoava os doentes e os olhos de acalento que foi um caso a parte nesse período.

Assim que ela saiu do CTI e teve alta do quarto para a casa passou alguns dias se recuperando das sequelas. Após conseguir se locomover fez questão de retornar ao hospital para conhecer e agradecer a todos os funcionários que a trataram com muito zelo em meio àquela pandemia. Durante vários dias visitou as equipes dos plantões, pois não queria deixar passar ninguém. À medida que os encontrava percebia que o olhar correspondia à personalidade da pessoa que se apresentava. Ficou feliz por conhecê-los e viu que eles também ficavam felizes por vê-la curada. Numa dessas visitas descobriu que “olhos de bênçãos” havia falecido devido a complicações do vírus depois de ajudar a salvar tantas vidas. Chorou com sua equipe de plantão e viu o quanto os trabalhadores de saúde foram heróis. Também em lágrimas me contava o ocorrido e disse que o único que ela não achou e ninguém conhecia ou tinha ouvido falar era o “olhos de acalento” que quase todos os dias a visitava. Sempre segurava sua mão, fechava os olhos e com sua prece silenciosa tinha o poder de acalmá-la. Ela tinha a certeza que era um anjo enviado por Deus para tomar conta dos filhos enfermos. Inclusive estava evitando falar para as pessoas, porque ninguém acreditava nela quando contava.

Após nossa conversa eu me despedi e fiquei pensando que pode até parecer estranho para quem vive outra realidade. Contudo, para nós que lidamos todo plantão com a vida, a dor e a morte e que estivemos de perto vendo a destruição que o Covid pode causar. Sabemos muito bem que anjos e milagres caminham conosco lado a lado.

Por Renatto D’Euthymio

Instagram: @renattodeuthymio

E-mail: renattodeuthymio@gmail.com

 

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Renatto D'Euthymio

Renatto D'Euthymio, carioca de Santa Tereza, dividindo residência entre São Gonçalo - RJ e a pacata e inspiradora, São José do Calçado no Estado do Espírito Santo. Estudante Rosacruz, técnico em Radiologia, flamenguista fanático e apaixonado pelas filhas Rannya e Rayanne. Cultiva desde criança uma paixão pelos livros e seus gênios. Autor do livro de poemas Solilóquio Antes e Depois da Forca (2020) e do livro de humor O Tabloide Jocoso (2021). Premiado em dezenas de concursos literários (Poesia, Crônica, Conto e Microconto), e publicado em Antologias e Coletâneas. É tão ligado à Literatura que de vez em quando não se contém e atreve-se a rabiscar algumas linhas.

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