Valdeci Santana

Meu amigo tem quatro patas

Meu amigo tem quatro patas.

Meu velho cão está tão cansado. O tempo chama, mas, não quero deixá-lo ir. Corro meus dedos através dos fios ralos de sua pelagem esbranquiçada, e relembro o tempo em que ela era sedosa e caramelizada. As mãos com as quais eu lhe afagava a pelagem também não eram tão ásperas como agora. E reconheço também, que minhas caricias já não são mais tão calorosas como foram um dia, e que a lentidão de meus movimentos talvez não seja suficiente, para preencher sua necessidade de toque humano. Estão se atrofiando as ligeiras patas de outrora. As mesmas patas que conduziam seu corpo jovem e forte em nossas inesquecíveis aventuras. Sei que neste seu melancólico olhar canino e fraco, quais suas orelhas que já não se sustentam mais em pé, você certamente revive seus inesquecíveis momentos de glória. Sei que assim como eu, você também deseja correr livremente por um vasto horizonte, nem que seja uma derradeira vez. Sentir o vento lhe acariciando o rosto, afugentando de súbito os pássaros para depois contemplar seu voo repentino. Sei que você quer ladrar até que seu latido incomode toda a vizinhança. A propósito, há tempos não ouço seu latido! E finalmente parei de ralhar com a saliva que você espalhava pelo chão da casa. Se eu soubesse que sentiria falta das pequenas broncas, talvez não tivesse parado de pregá-las, pois, eram detalhes que nos uniam.

Ah meu velho e fraco cão! Quando foi que envelhecemos tanto? Eu não percebi e você, se notou nada fez para tentar impedir. Aliás, esta foi uma das tantas lições que aprendi com você. O fato de somente viver. E talvez, estivéssemos tão ocupados vivendo que ignoramos o triste fato de que, a vida, mesma repleta de risos e aventuras, mesmo plena, um dia se acaba. Se você falasse a língua dos homens, talvez eu me envergonhasse de tudo que você teria para revelar sobre mim, pois foram incontáveis anos de confidências. Meu confidente mudo, que com o olhar me dizia absolutamente tudo. Cá entre nós, se você falasse a língua dos homens, provavelmente não teríamos esta união.

Não é necessário forçar a cauda num rodopio fraco e incompleto para dizer-me que compreende minhas palavras. Poupe o pouco tempo que lhe resta. Não faça como os tolos humanos, que vivem tentando preencher com palavras, o espaço onde cabe perfeitamente o silêncio. Como se achassem o silêncio simples demais.

Sei que este velho focinho, outrora gelado e úmido, ainda é capaz de farejar meu medo. E talvez seja justamente por esta razão que me lança este olhar combalido. Confesso cão amigo! Estou com medo. Aliás, o medo é o que primeiro se apresenta quando chegamos ao mundo, e o ultimo a ficar, para colher nosso derradeiro suspiro. Se eu tivesse pensado nisso antes, lhe daria o nome de Medo. Pois, é o companheiro mais fiel que temos. Tenho medo de ver sua casinha vazia, somente a brisa passeando por sobre sua roupa de cama, medo do pratinho com um resto de ração, de uma refeição inacabada e uma coleira solitária tremulando no prego da parede.

Não sei se existe um paraíso para cães e homens, ou se de fato existe um paraíso onde reencontramos aqueles que amamos, mas, conforta-me imaginar que essa nossa relação não tenha acontecido por acaso. Foi algo planejado. Pensar assim me faz sonhar com nos dois caminhando lado a lado novamente, aqui, ou em qualquer outro lugar.

fonte da imagem: https://www.pexels.com/pt-br/foto/adulto-envelhecido-curtido-maturado-10533754/

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Valdeci Santana

Escritor. Autor de 4 romances: "As palavras e o homem de bigode quadrado", "A prima Rosa", "Dia vermelho" e "O rei da Grécia" Palestrante, contista e apresentador no programa #Cultura Tv Batatais

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