Fabio Rodrigo

O Dia do Batismo

Por Thunai Melo*

A festa em um estádio de futebol vai muito além do que ocorre nos gramados. As bandeiras, sinalizadores, baterias, confetes, serpentinas e a multidão com as suas coreografias fazem o nosso corpo arrepiar por mais que a arquitetura e a política nas novas arenas esfriem o que há de melhor no espetáculo do futebol, que são as torcidas livres para fazerem o seu carnaval nas arquibancadas. Talvez, a liberdade para torcer do jeito que quisermos é tão ou mais importante quanto o resultado do jogo em si.

Fonte: Reprodução/Blog Coluna do Flamengo

Aconteceu no dia 01/07/1992, na segunda partida entre Vas x Fla, jogo valendo pela segunda fase Campeonato  Brasileiro,  em uma quarta feira que eu senti a primeira e a inesquecível sensação do que eu considero uma das maiores festas populares de todo o mundo, um derby no gigante, imponente e saudoso que foi Maracanã.

Virei torcedor do Flamengo no ano de 1991, após escutar com o meu pai e os meus colegas de infância a decisão do Campeonato Carioca na Rádio Globo (na voz do nobre e fenômeno José Carlos Araújo e os “trepidantes da jogada”), contra o Fluminense. Vitória do Mengo por 4 a 2 e jogadores como Gaúcho, Nélio e Júnior me encantaram e me conquistaram. Se tornaram os meus primeiros ídolos do esporte bretão. O Gaúcho era o meu atacante no meu primeiro time de “futebol de botão”, o Nélio era o meu símbolo da raça e o Júnior Capacete representava a magia que era torcer pelo Mengo.

Mas, voltando a falar sobre a minha emoção em ter pisado pela primeira vez em um templo tão sagrado, que é o Maracanã e os seus arredores (antes do crime da sua demolição que a população do Rio de Janeiro assistiu de maneira estática, aceitando as tenebrosas transações dos desgovernos do Estado e outras instituições que eu me nego a citar por aqui), após muitas promessas do meu pai para me levar ao estádio em um jogo decisivo contra o seu maior rival, foi uma sacada impressionante. Tudo conspirava a favor. O clima e o tempo estavam agradáveis, o time do Flamengo estava prestes a fazer um grande feito com uma geração de garotos e jogadores experientes no elenco, que era dar um passo para chegar à final em um campeonato que já tinham os seus favoritos em seu grupo. Botafogo e São Paulo, que timaços!

O meu pai, além de um rubro negro fanático, não respirava somente o Flamengo e sim a literatura e a língua portuguesa. Era professor, dos bons, defensor da educação pública e responsável com a educação da família, prezava por isso e nunca abriu mão de investir nos meus estudos. O rádio, os discos e os livros eram os seus companheiros em diversos momentos.  A MPB FM era sintonizada e as suas preparações de aula, leituras e as diversas atividades voltadas para as salas de aula eram realizadas com muito prazer e paciência. Muitos jogos nós assistimos juntos também dessa maneira. A Rádio Globo e os estudos sempre na mesma sintonia quando não íamos acompanhar o time nos estádios.

Enfim, no dia do jogo, eu encontrei o meu pai com a sua surrada camisa do Flamengo, ainda de pano. Nos encontramos em frente ao Curso Infantil Laura Cristina, escola de ensino primário localizada no bairro de Santa Catarina. Com um sorriso e um jeito bem receptivo, surpreendeu a mim e a minha irmã pela presença. Não estávamos acostumados a ter a sua presença. Na escola, a carga horária de trabalho do meu pai era intensa de segunda a sexta feira e o mesmo compensava a atenção em casa junto a minha mãe nas nossas atividades. Chegamos em casa, e ouvi do mesmo: “Coloque uma roupa, vamos ao Maracanã com o pai.”, “Você vai conhecer um inesquecível espetáculo, um Maracanã com casa cheia em um Fla x Vas”. Fiquei paralisado ao ouvir os seus dizeres. Eu, como um rubro negro apaixonado, já escutava as promessas e promessas do meu pai em me levar ao Maracanã, mas jamais eu iria imaginar que a promessa iria se cumprir tão rápida e em um jogo tão importante. Peguei qualquer bermuda, coloquei a minha camisa que eu tinha ganhado no Natal de 1991, a camisa 09, coincidentemente do Gaúcho, e coloquei o meu “kichute” e vamos nessa! Rumo ao maior do mundo!

Descemos a rua, falamos com os vizinhos e o meu pai, como se levasse o filho para conhecer o “mundo das meretrizes”, estufou o peito, franzino e corcunda e disse aos colegas que nos olhavam com um tom de admiração: “É a primeira vez dele no Maracanã”. Eu era tímido, tinha fala mansa e senti uma responsabilidade tamanha em garantir uma vitória logo na minha estreia. Pegamos o 423 Vila Isabel no Centro de São Gonçalo, com muitos rubros negros cantando e pulando no ônibus. Meu pai me explicava os rituais, que infelizmente se perderam com o tempo, como o balão que torcíamos para subir a marquise (caso o balão não ultrapassasse a marquise do estádio, a derrota era considerada certa), foi me ensinando as músicas que os torcedores cantavam como “Oh! meu Mengão, Eu gosto de você, Quero cantar ao mundo inteiro, A alegria de ser Rubro – Negro (…)”, “Domingo, eu vou ao Maracanã (…)” e outros clássicos das arquibas.

Já chegando ao estádio e com a alegre cantoria dentro do ônibus, a ansiedade e o frio da barriga aumentam. Quando o meu pai aponta o anel do Maracanã ao descer do ônibus, fico deslumbrado com tanta gente, bandeiras, fogos, camisas rubro negras e muita alegria. Gente bebendo, comendo churrasquinho, pulando e cantando como se não houvesse o amanhã. Dei a mão ao meu pai e não larguei. Fiquei aflito e tenso com a atmosfera até então inédita para mim. Eu tinha entre nove e dez anos, comecei a entender o que se tratava um Fla x Vas.

Chegamos à rampa do Bellini, comecei a ganhar forças com a torcida cantando novamente os clássicos, me senti a vontade com os rubro negros que se direcionavam para a arquibancada. Esqueci-me da sede e da fome que eu estava um pouco. Ao chegar à arquibancada, no setor onde fica a torcida Raça Rubro Negra até os dias de hoje, enxergo aquela imensidão verde e o monumento colossal. Chegamos cedo e o meu pai me contando as histórias de alguns jogos e gols do Flamengo como um Nelson Rodrigues ao meu lado, apontado o dedo e me mostrando os caminhos que ocorreram os gols mais fantásticos que tinha visto até naquele momento da sua vida.

O estádio foi enchendo, a torcida do Flamengo e as suas organizadas foram chegando com as suas bandeiras e baterias, confetes e serpentinas e a alegria contagiante foi tomando conta das arquibancadas de cimento, e o povo acompanhou as batidas com as palmas e os cantos. O início da partida estava marcado para 20:30, era a nossa tradição de chegarmos cedo no estádio para entrarmos no clima e sentir o calor e a emoção do povão com a sua festa irreverente. Era legal entrar cedo e curtir todo o espetáculo que geraldinos e arquibaldos de ambas as torcidas proporcionavam. O dia começa a se tornar inesquecível!

Espetacular foi a entrada do time em campo, nunca mais esqueço, e é uma lástima que esse ritual tenha se perdido nas arenas do “futebol moderno”  e com o “New Maracanã”, diminuindo a festividade, colonizando e elitizando os costumes do torcedor, impedindo a sua espontaneidade. Vibrei e gritei como nunca com as bandeiras tremulando, os fogos estourando e com os sinalizadores nos iluminando com a benção do Cristo Redentor quando era visível aos nossos olhos. São momentos que nenhuma “modernização” e o conforto oferecido por esses escroques vão compensar o que nós amantes do futebol perdemos. Sobre o jogo, não tinha ainda a capacidade de ter análises táticas ou técnicas, na verdade, tenho essa falta até hoje, “tô” nem aí! Estádio de futebol é para torcer e apoiar o time, não suporto uma galera que vai ao estádio, cruza os braços e finge ser um olheiro ou algo do tipo. Sempre reivindico que a arquibancada é o meu Carnaval.

Bolas na trave, gols perdidos de ambos os lados, enfim, saiu o gol do Mengo! Gol do Júnior ainda no primeiro tempo, em um escanteio. Gol olímpico? Teve desvio, sim e daí? O maestro abriu o placar e vi aquela massa estremecer e explodir em euforia. Abraçamo-nos, rimos, gritamos enfim, uma alegria gigante, éramos todos iguais naquela noite. Trabalhadores, desempregados, intelectuais, homens, mulheres, crianças, enfim, a comemoração de um gol é de fato um ato democrático. O jogo continua, começa o segundo tempo, jogo tenso e gooollll do  Mengo! 2 x 0, jogada de craque do Júnior e Nélio manda para redes. Cantoria infernal até o fim do jogo, hino do Flamengo sendo cantado a plenos pulmões e eu liberto e definitivamente batizado como torcedor rubro negro. Que batismo! Voltamos ao canto de “Dá-lhe, Dá-lhe, Dá – lhe Mengo, seremos campeões!”. Aprendi que o futebol é um alívio para as almas tristes e cabisbaixas nos momentos obscuros sejam na política ou nas nossas particularidades.

A descida da rampa, ao sair do velho Estádio Jornalista Mário Filho, foi consagradora. O sorriso do pai ao sentir com a missão cumprida em ter levado o filho para ver o seu time do coração, ser coroado com uma vitória sobre o maior rival e voltar para São Gonçalo em um ônibus lotado até a chegada em casa exaustos e de alma lavada foi novidade durante uma semana ou meses nas reuniões de família e na roda com os colegas da escola.

E o que os meninos do Flamengo na liderança de Júnior e do técnico Carlinhos aprontaram no restante dos jogos daquelas finais do ano de 1992? Algumas traquinagens que levaram a magnética a cantar “Olê, Olê, Olê, Olê…eu sou Flamengo, de coração, eu sou do time que é Penta Campeão (…)”.

Dedico esse texto aos amantes do futebol, às crianças que disputam as ruas entre os carros para fazer um gol de placa no “golzinho de praia”; aos jogadores resistentes das várzeas; à Confraria do Botão – SG; aos amigos rubro negros que apoiam as minhas loucuras quando se trata do que é “Ser Flamengo”; ao AVM 255 Futebol e Resenha; à minha mãe Dona Gilçara, Botafoguense que nunca foge da raia; aos colegas de magistério; à minha esposa Priscilla, que caminha comigo nas lutas diárias e que me adoça nos momentos de tempestade; e, é claro, ao meu pai, Getúlio, rubro negro responsável por tudo isso e pela paixão que eu vou carregar até o fim dos meus dias. 

O futebol vai além dos gramados…

*Thunai Melo é professor da rede Estadual do RJ e membro da Confraria do Botão – SG.

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Fabio Rodrigo

Fábio Rodrigo é professor de Língua Portuguesa da secretaria de educação do estado do Rio de Janeiro e é doutorando em Língua Portuguesa pela UFRJ. Recentemente adquiriu o título de mestre em Estudos Linguísticos pela UERJ/FFP. Tem se dedicado a escrever crônicas que abordam temas do cotidiano e sua relação com a língua portuguesa e que são publicadas semanalmente no jornal Daki e no portal Entre Poetas e Poesias. Seu primeiro livro, Mixórdia e outras histórias, lançado pela editora Apologia Brasil, é uma coletânea de crônicas publicadas tanto no Daki quanto no portal. Suas crônicas, em sua maioria, são ambientadas no município de São Gonçalo, cidade em que o escritor nasceu e em que trabalha como professor. Como professor de Língua Portuguesa, Fábio Rodrigo procura aproximar o conteúdo das aulas de Português ao dia a dia, e seus textos são o resultado disso.

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