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Suplemento Araçá – Vol.01 – nº01 – Dez./2021 – Crônicas & Opiniões – “POR QUE A REVOLTA DA VACINA DE 1904 NÃO SE PARECE COM OS “REVOLTADOS ANTIVACINA” DE 2021?” – Lucas Salgueiro Lopes

ISSN: 2764.3751

POR QUE A REVOLTA DA VACINA DE 1904 NÃO SE PARECE COM OS “REVOLTADOS ANTIVACINA” DE 2021?
Lucas Salgueiro Lopes

Era 08 de dezembro de 2020; o Reino Unido se tornava o primeiro país ocidental a iniciar a vacinação contra a COVID-19. Nesse mesmo dia, no Brasil, manifestantes saíam às ruas de São Paulo para protestar contra a vacina. Entre suas principais pautas estavam o pedido para que a vacina contra o novo coronavírus não fosse obrigatória e os ataques ao governo do estado, que havia acabado de anunciar, naquela semana, o início da vacinação em janeiro de 2021. Outro exemplo relevante pode ser encontrado em 22 de dezembro, quando manifestantes – sem máscaras, mas trajados com a bandeira do Brasil – tomaram a Praça da República, em Belo Horizonte. Suas revoltas se postavam, sobretudo, contra a vacinação obrigatória, os lockdowns, e os ministros do Supremo Tribunal Federal que, para eles, deveriam ser presos; seus pedidos, segundo o jornal Estado de Minas, eram pela reeleição do presidente do Brasil. Alguns de seus principais argumentos, ainda segundo a reportagem, eram de que “a vacina está dando falso positivo para HIV” e que “a China é a responsável por este vírus”.

Claro, tais notícias deixam atônitas as pessoas que possuem o mínimo de conscientização (e decência) neste momento. Como, no meio de uma pandemia que matou milhões de pessoas, pode haver grupos protestando contra uma vacina? E pior: tais grupos não são tão pequenos assim. Em pesquisa nacional realizada pelo Instituto Datafolha, os números assustam: 22% dos brasileiros dizem não querer se vacinar – mesmo quando a vacina estiver acessível a todos. Com isso, muitos tentaram usar a História (sempre ela) para explicar a presente negação de parte da população para se vacinar: “Isso está igual a Revolta da Vacina!” – muitos disseram. Está mesmo? A resposta tem que ser direta: Não! A Revolta da Vacina de 1904 nada tem de parecido com os revoltados antivacina de 2021. Vamos voltar no tempo…

O contexto da Revolta da Vacina se inicia em 1902, com a chegada de Rodrigues Alves à presidência da República. O político paulista tinha como principais objetivos o saneamento e as reformas da cidade do Rio, além da resolução das inúmeras doenças endêmicas presentes na capital naquele momento. No início de século XX, o Centro do Rio também não parava de crescer. Eram ex-escravos, migrantes, estrangeiros “despejados” no porto… faltava moradia adequada para tanta gente. Nessa “falta de espaço”, multiplicavam-se os cortiços e as casas de cômodo do Centro. Para quem não conseguia ficar por lá, a solução era ocupar os morros ao redor da cidade ou os mangues, construindo casebres com tábuas de caixa de bacalhau.

Paralelo a isso, cresciam os índices de criminalidades na região, tal como, a prostituição, a vadiagem e o alcoolismo. Assim, na cabeça da burguesia e do governo, parecia claro: a culpa era dos pobres. Não só por toda criminalidade, mas também pela proliferação de doenças. Os pobres precisavam sair da região central. Ainda em 1902, Rodrigues Alves indica o engenheiro Pereira Passos para ser prefeito do Rio e responsável pela reforma urbana no local. Esse, por sua vez, teria plenos poderes sobre a cidade. Números oficiais da época apontam que, até 1905, a reforma urbana havia demolido seiscentas habitações coletivas e setecentas casas, tirando o teto de cerca de 14 mil pessoas. Para o problema das doenças, em 1903, o presidente nomeia o cientista Osvaldo Cruz como diretor-geral de saúde pública, também com amplos poderes.

O que se vê daí em diante é uma série de ataques contra os marginalizados do Centro. O nome recebido para tais ações é sugestivo: “bota-abaixo”. Arbitrariamente, eram comuns as demolições de moradias populares e as expulsões de seus moradores sem direito a nada. Ainda eram recorrentes os casos de prisões e violências policiais. A violência contra os pobres, por parte do governo, atingia todas as esferas possíveis: suas roupas, pertences, cotidiano, hábitos, suas formas de subsistência e de sobrevivência, sua cultura… nada mais era legal.

E de onde vem a bendita vacina? Em meio a todas essas doenças que circulavam no Rio à época, estava a varíola, que vinha se espalhando violentamente pelo Brasil, mas, em especial, pela capital federal. O que deflagra a “Revolta da Vacina” em meio a todo esse contexto de “bota-abaixo” é o decreto de 09 de novembro de 1904 que declara obrigatória a vacina da varíola. O medo da população mais pobre foi instantâneo: com toda truculência recebida desde o início das reformas, agora se acrescentava uma vacina “forçada”. Os opositores da vacina não estavam exatamente atacando a utilidade dessa – à qual, em sua maioria, reconheciam a importância –, mas as condições de aplicação da mesma. As memórias das campanhas de vacinação anteriores ainda eram claras: policiais envolvidos nas ações, invasões de casas, agressões, aplicadores pouco confiáveis… Para piorar, a notícia de que a vacina continha em sua composição o vírus da varíola fez com que o medo de que a campanha fosse um “disfarce” para o extermínio em massa dos pobres ficasse ainda mais evidente.

Era 10 de novembro de 1904; as agitações populares tomavam as ruas da capital do Brasil. Oradores do povo incitavam as camadas empobrecidas à rebeldia contra a regulamentação da vacina. As autoridades deixavam claras suas impressões sobre os manifestantes: “são desordeiros e desocupados de toda espécie”, diz Rodrigues Alves; “é o pessoal habituado ao crime, as fezes sociais”, conclui o chefe de polícia na época. Lima Barreto, o escritor contemporâneo aos acontecimentos, discordava: “[são] pessoas diferentes, de profissão, inteligência e moralidade”. A revolta em si durou poucos dias. Nela, a polícia respondeu com forte repressão, acarretando dezenas de mortes e centenas de prisões. Depois disso, a reforma urbana e a modernização continuaram. A vacinação obrigatória foi revogada, e as mortes por varíola seguiram crescendo. A truculência e as arbitrariedades da polícia e do governo contra os pobres e marginalizados permaneceram. Mas isso é outra história…

A fala do historiador Nicolau Sevcenko sobre os manifestantes de 1904 é perfeita para entendermos as diferenças entre esses e os “revoltosos antivacina” atuais: “A revolta não visava o poder, não pretendia vencer, não podia ganhar nada. Era somente um grito, uma convulsão de dor, uma vertigem de horror e indignação. Até que ponto um homem suporta ser espezinhado, desprezado e assustado? Quanto sofrimento é preciso para que um homem se atreva a encarar a morte sem medo?”. Assim, fica claro: NÃO são o mesmo grupo. A luta de 1904 não é a mesma luta de 2021.

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Indicações & Referências:

Nicolau Sevcenko – “A Revolta da Vacina” (livro).
Sidney Chalhoub – “Cidade Febril” (livro).

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Lucas Salgueiro é Mestrando em Educação da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP/UERJ), e Pós-graduado em Educação Básica – Gestão Escolar pela mesma instituição.

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