Cristiano Fretta

E se todos nós só soubéssemos gritar?

Dia desses, passando em frente a uma casa aqui do condomínio, enquanto levava minha cadela para passear, reparei que há uma família que está sempre aos berros. É pai que grita com mãe, que grita com filho, que grita com irmã, que grita com pai, que grita com cachorro, que corre até o portão e late para a minha cadela, que revida o latido e me puxa pela coleira, me obrigando a gritar com ela. Sempre que passo em frente a essa casa, é a mesma situação. Parece que ali dentro ninguém consegue se comunicar com menos de 100 decibéis. “Ninguém deve ser normal ali dentro”, penso comigo enquanto prossigo a caminhada.

O que seria de nossa civilização se gritássemos o tempo todo?

O sujeito entra em uma cafeteria:

– Pelo amor de Deus, me dá um café, caramba!

– E vai querer o que, desgraçado, um expresso?

– Duplo, seu idiota, um expresso duplo, seu imbecil!

Os terminam aos socos, meio a café na roupa e xícaras quebradas.

Alguém liga para uma tevê por assinatura:

– E então, seu arrombado, quer aumentar essa porcaria de pacote de dados ou vai dar uma de arregão e pedir para cancelar o plano?

Na reunião de pais, o professor olha para os responsáveis:

– Se alguém aqui veio questionar por que eu não consigo vencer todo o material didático, saia agora, pouco me importa, ouviram? Saiam daqui agora!

Fica impossível imaginar Machado de Assis escrevendo “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria” enquanto ele e sua esposa Carolina discutiam aos berros. Ou então alguém lendo a Declaração Universal dos Direitos Humanos em tom de gritaria.

Em um mundo em que todos nós só soubéssemos gritar, não haveria espaço para a contemplação, pois o grito anula o tempo, transforma todo a realidade em um eterno presente regado a algo essencialmente irracional e animalesco. Nesse não lugar, inexiste espaço para o florescimento da Arte, da Ciência, enfim, não há a mínima possibilidade de que a nossa racionalidade humanística crie realizações em prol de um bem comum: a Arte se cala, o diálogo dá lugar à violência, o obscurantismo assume o vazio deixado pela observação racional da realidade.

Ultimamente, quando tenho levado minha cadela para passear, evito passar em frente à casa da família que grita. Prefiro seguir em direção ao silêncio contemplando o requebrado silencioso do meu pet passeando, não na esperança de que eu tenha um momento de iluminação criado, mas simplesmente que a vida siga o seu curso sem desnecessários rompantes de ódio. Hoje, mais do que nunca, é necessário silêncio.

 

Fonte da imagem:  https://pixabay.com/pt/illustrations/grito-scream-arte-garoto-mensagem-6706856/

 

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Cristiano Fretta

Cristiano Fretta é mestre em Letras pela UFRGS, músico, compositor e professor de Literatura e Língua Portuguesa em escolas privadas de Porto Alegre. É autor das obras "Chão de Areia", "Tortos Caminhos", "A luz que entrava pela janela" e "Crônica de um mundo ausente". Também colabora com as revistas digitais Parêntese, do grupo Matinal Jornalismo, Passa Palavra e com o jornal Extra Classe. Nasceu e mora em Porto Alegre

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