Valdeci Santana

Banquete em pátrios rasos

Banquete em pátrios rasos

Sonhei que o nosso Brasil era uma mesa de jantar onde banqueteavam as mais múltiplas castas. Contudo, não era uma banca qualquer, era uma corpulenta, generosa e farta mesa digna do mais luxuoso buffet.

Imagina só! Somente uma cachola desmiolada como a minha para propor tal sonho absurdo.

Todavia, assisti estupefato, a entrada regada a saladas, cuja exuberância dos múltiplos tons verdejantes, contrastava com as cores mais vistosas e alegres que se tenha numa aquarela. Toda a densa floresta amazônica e demais costelas de matagais tropicais, eram avidamente devorados por enormes bocas gulosas, que mastigavam seus galhos, varriam suas copas e deixavam para trás, somente a mórbida vastidão de um prato limpo.

Pátria gentil esta tal mesa!

Serviram tantos animais que a variedade surpreenderia qualquer compêndio Darwiniano. Vi uma malta esganada, mastigando sem cerimônias nossa fauna inteira. Os ossos destas espécies quase extintas eram atirados não para os cães, mas, para seus patriotas que, para disfarçar a fome, festejavam em entretenimentos variados. Éramos um povo faminto, porém alegres, cientes de que contribuíamos para o bem da nossa pátria.

Não me ofereceram lugar a mesa, mas, os tantos discursos que ouvi de quem elegi para estar ali, garantiam que chegaria a minha vez. E que por hora, eu era de extrema valia, servindo-lhes como um obediente e dedicado lacaio. Quando preocupado com a avides da mastigação e salivando qual um cão raivoso, eu ousei arguir, afirmaram que a divisão era extremamente justa, que nossas leis estavam aqui para garantir tal. E se ainda assim não me desse por satisfeito, eu poderia dedicar meu voto para que outro me representasse à mesa.

Engoli a contragosto diminutos farelos que não matavam a fome, mas, eram suficientes para acalmar meu estômago.

A sobremesa não se fez por menos. Enormes taças de petróleo, cédulas de real, mansões e acreditem, teve até um bolo com formato de cifrão. Agoniado, meu estômago uivava feito animal ferido, mas, tão bondosos foram aqueles senhores, que me deram a constituição e, nela, li tantos direitos (a maioria eu desconhecia), entre eles, o direito a lugar na mesa, e quando cismei de reivindicá-lo, expuseram tantas burocracias, tantas barreiras que, por mais que eu me esforçasse jamais me sentaria entre aqueles pares.

Indignado observei as pessoas que gritavam ao redor da mesa. Algumas exigindo a derrocada daquela mesa farta, outros apoiando quem nela comia, e eu, com a boca entupida de migalhas, sem saber a quem apoiar, pois, nenhuma das propostas pareciam me levar diretamente à mesa, quando muito, melhores migalhas, então, aturdido, pensei “migalhas, mesmo sendo melhores, são migalhas”.

Passou tanta gente ao redor daquela mesa. Alguns mais esganados do que os outros, enchiam as mãos e até enfiavam comida pelos bolsos. Debrucei sobre a vassoura e fiquei refletindo sobre quanto tempo mais aquela fartura suportaria tantas bocas. E se os famintos resolvessem se juntar e expulsar todos dali? E quem garantiria que os famintos de agora não se tornariam os esganados de amanhã, uma vez instalados na mesa? Porém, os famintos não chegavam num consenso, e cada um defendia algum daqueles senhores que nem lhes davam ouvidos, pois, estavam mais ocupados em mastigar e palrar com o colega do lado.

Acordei confuso, sem saber se estava ou não sonhando, porém, logo tratei de esquecer tal absurdo.  Somente um maluco varrido como eu para sonhar uma coisa dessas! Onde já se viu! Uma mesa pátria, onde lideres desalmados se fartam de banquete, enquanto seu povo observa com olhos cheios de fome?

fonte da imagem: https://www.pexels.com/pt-br/foto/pratos-e-tacas-de-vinho-na-mesa-1114425/

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Valdeci Santana

Escritor. Autor de 4 romances: "As palavras e o homem de bigode quadrado", "A prima Rosa", "Dia vermelho" e "O rei da Grécia" Palestrante, contista e apresentador no programa #Cultura Tv Batatais

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