Valdeci Santana

Uma dose para um CORPO de gelo

 

O amigo não teve culpa!

O presente foi de boa fé.

Afinal, como o infeliz haveria de saber, da promessa que o outro fizera a si próprio?

Seleta safra. Cachaça do tipo que se reserva aos amigos mais estreitos.

Um misto de animosidade e conflito ditou o espirito do pobre Geraldo durante todo o expediente. Vez ou outra espichava os olhos para a sacola onde aninhara a garrafa, como se certificasse de que ela não resolvera sair por ai, oferecendo seu gargalo suculento aos beiços distintos. Mais cedo, tivera de súbito a ideia de devolver o presente ao remetente. Agradeceria a gentileza, mas, informaria do novo homem que pretendia ser, de agora em diante. Embora, na repartição, todos conhecessem somente aquele Geraldo. Também lhe ocorrera fugir com a garrafa para o banheiro. Duas, ou, até três goladas e ninguém perceberia. Não deu ação a nenhuma destas ideias.

Em casa, repousou a garrafa na superfície lisa da mesa de jantar, sentou-se diante dela e fitou-a demoradamente, enquanto refletia sua vida.

A bebida lhe aplaca as dores, lhe acariciava as cicatrizes que ela mesma abrira. Embriagado, Geraldo conhecia a liberdade. Sem a bebida, sentia seu espirito frio, seu raciocínio sem criatividade e sua personalidade sem sal. Sóbrio, via-se como somente um simples Geraldo, entre tantos Geraldos soltos por aí. Mas, quando bebia, era como se um novo homem assumisse aquele corpo. Um homem livre, destemido e sem freios. Um sujeito cheio de opiniões para qualquer debate e com bastante energia para defendê-los. Era como se somente com a bebida, as coisas de fato se colorissem. Sem a bebida, nenhum evento era devidamente especial. Tanto se relacionou com a bebida, que acabou sozinho, sem as duas mulheres de sua vida.

Na semana anterior, havia um bilhete onde agora estava a garrafa. Um bilhete de despedida, que abrira uma gigantesca cratera entre as mutilações de sua alma. Já a garrafa, prometia silenciosamente, senão fechar, ao menos remendar essa cratera.

Mãe e filha preferiram o exilo ao lar habitado pelo monstro que a bebida dava luz frequentemente. Um monstro absolutamente egoísta e impiedoso. Surdo. Incapaz de ouvir os apelos de quem sofria. Um monstro absolutamente insensível, exatamente como somente os egoístas o sabem ser. Excessivamente agressivo com uma, excessivamente carinhoso com a outra. Fugiu assustada, a agredida. Fugiu traumatizada, a acariciada.

Pensar na ausência das antigas habitantes daquele lar intensificara o gelo em sua alma, e a necessidade de aquecê-la com álcool.  As teorias do “fique sóbrio” e “embriague-se” duelaram num intenso conflito interno, por fim, vencera aquela a quem Geraldo defendera com mais eloquência.

Num ímpeto resoluto, Geraldo destampou a garrafa e entornou o liquido com invejável apetite etílico. No inicio, foram goles e reflexões, depois vieram lágrimas abundantes, e teve até um instante para um riso escarnecedor. No fim, sobraram somente os goles. Novamente aquele monstro vagando trôpego pela casa, desequilibrando-se, esbravejando, discursando num monólogo. Um gigante de gelo, traído pelo falso calor com o qual o álcool prometeu abrasar sua alma. Outrora, ele conseguia se aquecer no calor das agressões que proporcionava a uma, e na chama das caricias que empregava na outra. Agora, sobrara somente ele próprio, a quem agredir, a quem acariciar.

Em passos desequilibrados, seguiu cegamente ao quarto da filha, onde ele sempre se refugiava, antes e depois, de surrar a esposa. Deitou- se na cama, entre as coisas esquecidas na partida. Inalou o perfume. Mas, não encontrou onde se aquecer. A garrafa aninhada no peito não trazia calor que ele pretendia.

Estava frio em sua alma. E então, desesperado pela quentura do corpo, Geraldo tivera uma brilhante ideia. Besuntou o próprio corpo com o resto da bebida, mergulhou entre os lençóis da filha, ajeitou-se no travesseiro e com a obstinação típica dos embriagados, ateou fogo no colchão. E quando as labaredas se acentuaram, Geraldo teve certeza de que nunca mais seria um corpo de gelo.

Fonte da imagem:https://www.pexels.com/pt-br/foto/arte-alcool-bebida-alcoolica-bebida-6069745/

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Valdeci Santana

Escritor. Autor de 5 romances: "As palavras e o homem de bigode quadrado", "A prima Rosa", "Dia vermelho", "O rei da Grécia" e "Mineradores: O preço da liberdade" Palestrante, contista e apresentador no programa #Cultura Tv Batatais

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Um Comentário

  1. Valdeci, que texto cru em seu conflito, pungente, doloroso e tão real. Conheci histórias de alcoolismo na minha família e conhecidos (quem nunca, não é?). Destroem as pessoas em volta e o próprio alcoólico. Uma lástima. Parabéns pela narrativa. Abraço.

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