Cristina Vergnano

Noite de balé

Às vezes, fico pensando em como pequenas ações podem impactar positivamente as pessoas e como isso tem potencial para se transformar em verdadeiros presentes. Vivi uma dessas experiências faz pouco tempo.

Cresci envolta em música. Minha mãe apreciava os cantores da era do rádio, tinha diversos discos de Carlos Galhardo, Orlando Silva, Vicente Celestino, entre outros, e cantarolava em casa a qualquer hora do dia. Já meu pai gostava das obras eruditas, desde óperas a concertos, sinfonias e balés. Todo o sábado, quando voltava do trabalho, tocava seus discos: Bach, Beethoven, Tchaikovski, Vivaldi, Mozart etc. Ele o fazia de forma entusiástica, a tal ponto que a vizinha do outro lado da rua podia ouvir e saborear, para desespero da mamãe, que considerava a vitrola muito alta. Para ela, essas composições lembravam o período da Quaresma de sua infância, quando as rádios paravam de tocar as alegres marchinhas de carnaval e passavam a peças mais soturnas. Não é que detestasse todas; havia aquelas que escutava com gosto, no entanto, não como meu pai.

Minha irmã e eu, em meio a isso, fomos somando o apreço pelas canções de nossa própria época de pequenas, àquelas aprendidas da mãe e ao repertório do pai. Entre os destaques, lembro-me bem dos discos do balé O Lago dos Cisnes, de Tchaikovski, cujas capas exibiam fotos de bailarinas em recortes de cenas da coreografia. Embora nunca tivéssemos estudado dança, rodopiávamos pela sala, felizes e ruidosas, ao som das lindas músicas. Guardo até hoje um elemento adicional nessa relação emotiva: a caixinha de música com um fragmento do balé, último presente de minha madrinha de batismo.

Basta esta introdução para entender a alegria (e consequente desapontamento) que senti, quando soube que o Teatro Municipal do Rio de Janeiro abriria sua temporada de balé 2024 com O Lago dos Cisnes. Claro, já vi montagens dele em outras ocasiões, porém, dada a beleza da composição e seu caráter icônico, quantas vezes fosse apresentada, tantas eu gostaria de assisti-la. Sendo assim, fiquei animada ao descobrir que a apresentariam, agora em maio, e desiludida ao saber que os ingressos terminaram logo na primeira hora de venda. Eu havia perdido a chance.

A vida, contudo, nos traz surpresas. Aconteceu de eu comentar o incidente com meu professor de pilates. Este, por sua vez, tem como alunos dois violinistas do Municipal. Sem me dizer nada a respeito, conversou com um deles e fui presenteada com dois ingressos para a sessão de abertura, acontecida na noite de quinta-feira, 16 de maio. Artistas do teatro envolvidos nos programas têm direito a essas entradas e, com frequência, as presenteiam a conhecidos. Desta vez, coube a mim a honra de recebê-las. Só posso agradecer a ambos. Seu pequeno gesto de gentileza me brindou com uma noite memorável, com um pouco de sabor de infância.

Lembro que todos esses talentosos músicos e bailarinos são funcionários públicos concursados do estado do Rio de Janeiro. Sei bem as dificuldades que encontramos na área da educação, da ciência e tecnologia e das artes e cultura para realizar nosso trabalho. Há muitos obstáculos a vencer. Desse modo, a beleza da apresentação ganha sentido renovado e intensificado. Era visível a expressividade das bailarinas e bailarinos, nos passando toda a dor, o conflito e o amor dos personagens da história. A música se entranhava em nós, pelos ouvidos e pela pele. Um Tchaikovski lindamente executado para uma plateia entusiasta, cheia de gente jovem, num teatro lotado. Estão todas e todos de parabéns!

A arte tem esse poder: tocar nosso coração e mente, sensibilizar, emocionar. A música e a dança atravessam fronteiras do tempo e do espaço, unindo pessoas. Estávamos nós, brasileiras e brasileiros, em pleno século XXI, vibrando com uma obra maestra de um russo do século XIX.  E não apenas isso. O árduo trabalho daqueles profissionais representa, também, superação, afinal, quanta gente tem, hoje, suas vidas transformadas pela música e dança. Sob todos os ângulos que eu analise a experiência, só me cabe reconhecer a beleza do sentir, imperando e dominando a cena e reverberando, horas e dias depois, com o mesmo brilho.

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Link da foto em destaque: autoral.

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Cristina Vergnano

Carioca, tijucana, nascida em 1961, foi professora e pesquisadora em compreensão leitora, no Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Em 2018, se aposentou. Desde então, é escritora, blogueira do "Tecendo o Verbo" e fundadora do Grupo Traçando de escritores. Sua produção se volta para as crônicas, os artigos de opinião e os contos. Teve textos selecionados no Prêmio Rio de Contos, segunda edição e no Prêmio Arte e Literatura USP 60+ de 2021. Publicou contos em coletâneas.

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8 Comentários

  1. Que delícia e que privilégio desfrutar desta apresentação! Muito bom esse seu dom de escrever e compartilhar suas vivências, nos transportando da infância à recente apresentação do balé. Parabéns!

    1. Obrigada pelo carinho e pela leitura, Mônica. Fico feliz por compartilhar essas histórias, vivências e, mais ainda, por tocar a sensibilidade de vocês, leitoras e leitores. Bjs.

  2. Muito sensível, Cris. Concordo com você. O que seria de nós sem a arte no mundo?

    1. Não é, Bruna? A arte toca e desperta a nossa sensibilidade, nos lembra que somos humanos e nos ajuda a conectar com outras pessoas e com o mundo. Obrigada pela leitura. Bjs.

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