João Rodrigues

O entregador de sentimentos

                                  “Um carteiro entrega muito mais que cartas – entrega sentimentos.” (Tatite)

Por aqui, proporcionalmente, são poucos os moradores que conhecem as ruas por seus nomes oficiais. Geralmente usam alguma referência para explicar a alguém como chegar até elas: é a Rua da Prefeitura, a Rua da Estação, a Praça da Telemar, a rua de fulano, de sicrano etc.

Recentemente descobri como se chama a Rua do Correio: Rua Monsenhor José Ataíde Vasconcelos. Sou um dos que não se preocupam em memorizar os nomes das ruas, pois o mapa da cidade cabe todo na minha mente. Além disso, é mais fácil encontrar uma casa ou um estabelecimento qualquer por algum ponto de referência do que por seu próprio nome, eu acho.

Todo mundo sabe onde fica a Rua do Correio! Conheço-a por esse nome desde quando era na outra rua, perto do Clube Velho. Olha aí, outra referência! No entanto, a meu ver, a maior referência da Rua do Correio não era o Correio, mas Francisco das Chagas, o carteiro mais conhecido e carismático que nossa cidade já viu. E não venha me dizer que você não sabe quem é Francisco das Chagas Monte Boto! Outra coisa interessante é que nesses pequenos centros quase todo mundo tem apelido: Curicaca, Piaba, Cobra, Dadau, João Cebola, Chicó, Pirital, Tatite…

Poucos sabem o nome do Tatite. Fiquei sabendo quando ele se candidatou a vereador em 2016, e confesso que não me acostumaria a chamá-lo pelo nome de batismo. Quando descobri, mentalmente tentei chamá-lo de Seu Francisco, Seu Das Chagas, Chiquinho, Chicão, Seu Chico, mas nenhum combinava com ele tanto quanto Tatite. Neste caso, a voz do povo vale mais do que a do cartório.

Mas voltando ao Correio, o lendário carteiro, que por dezenas de anos percorreu nossas ruas entregando cartas, contas, encomendas, é mais emblemático do que o próprio Correio. Sim, lendário! Tatite foi uma lenda. Desprovido de orgulho e com uma paciência de Jó, estava sempre disposto a nos atender, a nos dar uma informação a mais, a tirar uma dúvida. Não era daqueles que nos atendia apenas quando estava atrás do balcão. Atendia nas ruas, à noite, aos feriados, na missa…

– Tatite, tô esperando uma encomenda, que tá demorando.

– Amanhã, quando chegar no Correio, eu vejo – respondia.

E via mesmo.

São poucos os profissionais que atendem fora de seu expediente: médico, líder religioso, advogado, mecânico… o Tatite. Pelo menos atendeu enquanto não se aposentou.

Uma vez nos encontramos e ficamos um bom tempo conversando (já estava aposentado). Ele gostava de conversar, de falar sobre suas experiências de vida, de sua religiosidade. Me contou como conseguiu passar no concurso dos Correios, uma história muito bonita, cheia de vontade e fé. “Deus” era uma palavra que estava sempre em sua boca, e não tenho dúvida de que também fazia morada em seu coração.

Em outro momento, perguntei-lhe o que achava de sua vida de carteiro, do que mais gostava e do que não achava tão bom. Foi uma longa conversa. Como todas as profissões, há seus prós e contras. “Trabalhar exposto ao sol e à chuva não é tão bom”, me disse, e “a responsabilidade e o cuidado que preciso ter com as coisas a serem entregues (cartas, documentos, produtos) exigem muita atenção”. Porém, estar em contato com as pessoas, conhecer grande parte delas pelo nome, saber onde moravam era, a seu ver, muito interessante. E num lugar onde quase todo mundo tem apelido, deve ser engraçado descobrir o verdadeiro nome das pessoas.

No entanto, o que mais me chamou a atenção foi quando ele disse que, como carteiro, entregava principalmente notícias – boas e ruins (devemos levar em consideração que Tatite trabalhou quase toda a vida na época que as notícias pessoais chegavam por cartas, e não por mensagens de WhatsApp). E nessas entregas, por muitas vezes, viu alegria, surpresa, tristeza, choro… Segundo ele, entregava os mais diversos sentimentos. Achei aquilo formidável, poético! Um carteiro não entrega apenas cartas, entrega sentimentos!

Quem de nós, que somos da velha guarda, não passamos dias esperando uma carta de alguém que, ao deslacrarmos, estava molhada de saudade, ainda pingando lágrimas, contando sua vida, esperanças, medos, aventuras e desventuras? Ou aquelas revistas da Avon, da Hermes, que mostravam os lançamentos de produtos, a última moda? Quem não se recorda dos cartões de Natal em dezembro, e que às vezes chegavam só em janeiro? E os cartões-postais com imagens belíssimas de Copacabana, do Pão de Açúcar, do Corcovado? Quantas vezes, ansiosos, não paramos aquele homem alto, vestido de azul e amarelo, pedalando uma bicicleta amarela pelas ruas para perguntarmos se não tinha uma encomenda assim e assim para nós?

Era o Tatite, o entregador desses sentimentos. Ele parava, nos atendia, olhava se tinha alguma carta; se não, pedia que fôssemos lá mais tarde, ou amanhã. Não nos deixava sem respostas. Pois é, ninguém melhor para entregar sentimentos do que alguém que tem sentimentos de amor e respeito ao próximo.

Foi nessas conversas com ele que pude perceber que um carteiro é muito além de um entregador de cartas. Descobri que ele entrega poesia, histórias de vida, sonhos, esperanças, paixões, realizações e tantos outros sentimentos, que estão contidos nos envelopes e pacotes que levam até nós com cuidado e responsabilidade.

Sempre que passo pela Rua do Correio, com os olhos da alma vejo o saudoso carteiro em sua bicicleta amarela e a bolsa azul repleta de pacotes e envelopes, e sai pedalando pelas ruas da cidade, cumprindo sua bela missão de levar ao próximo os mais variados sentimentos.

 

João Rodrigues (Reriutaba – Ceará)

Imagem cedida por Hermógenes Boto, sobrinho do Tatite

Mostrar mais

João Rodrigues

Nascido em Riacho das Flores, Reriutaba-Ceará, João Rodrigues é graduado em Letras e pós-graduado em Língua Portuguesa pela Universidade Estácio de Sá – RJ, professor, revisor, cordelista, poeta e membro da Academia Ipuense de Letras, Ciências e Artes e da Academia Virtual de Letras António Aleixo. Escreve cordéis sobre super-heróis para o Núcleo de Pesquisa em Quadrinhos (NuPeQ) na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul.

Artigos relacionados

Verifique também
Fechar
Botão Voltar ao topo