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Suplemento Araçá – Vol.02 – nº03 – Set./2022 – Contos – “A nova musa’ – Oswaldo Eurico

ISSN: 2764.3751

A nova musa
Oswaldo Eurico

Estou no meu desespero de escrever. Enquanto assisto uma entrevista ao vivo pela internet, digito. A musa inspiradora está pirada ou ficou presa no engarrafamento. Talvez tenha se molhado toda e desmanchado o penteado artificial dos tratamentos sensíveis à chuva. Enquanto eu penso, ela se arruma e sobe até meu altíssimo quarto andar do edifício mais alto do mundo de onde vejo toda a Terra. Deve estar subindo pelas escadas. A campainha tocou.

– Camila?!

Não me respondeu nada!

Mas era ela mesma, a minha musa Camila. Não sei se seu nome é escrito assim mesmo com C, mas como algum aluno meu pode vir a ler este texto, vou escrever com essa letra de criação. Não gosto de K. Ela é só para os quilômetros de narrativa que tenho de percorrer. Não há problemas; preciso queimar muitas calorias adquiridas ao longo do tempo. Novamente a letra entre o J e o L aparece. Paciência…

Voltemos à porta…

– Camila?!

Novamente não ouço a resposta. Talvez seja porque minha porta é de um material simples criado no século XX e comprado no século XXI. As musas estão acostumadas a portais, colunas com capitéis finamente trabalhados. Não deve ter reconhecido que moro num templo também.

Abro a porta e não vejo nada além do corredor escuro sem luz no fundo. Elas se apagam por falta de gente. Vou para a sacada. Abro a porta que dá para a varanda. Mal arrasto a folha de vidro e o vento toma a sala. É que meus olhos viram as paisagens da minha terra natal, da capital e das serras. Os ventos vieram de lá. E quem ele trouxe imensa e linda? Camila! Sim. Ela mesma.

Ela nasceu há poucos minutos aos meus ouvidos na entrevista do professor-escritor com a professora-escritora. Seu nome foi citado e ela brotou guerreira em busca dum livro. Conquistou! Ganhou a batalha. Voltou mais tarde triunfante no festival de leitura. Minha memória foi revolvida, lançada no espaço da sala de aula do colégio no topo da colina entre montes de gente e de casas ladeiras acima, ladeiras abaixo. Eu morava de frente para o mar. Subia e descia morros até chegar vivo ao trabalho.

– Boa tarde, turma!

– Boa taaaaardeeee, professor!

– Que turma animada!

Os alunos estavam todos comportadíssimos e ansiosos para saberem da Bisa Bia e da Bisa Bel. Eu lia um trecho para eles e, criado um suspense, a aula era suspensa num sincronismo perfeito até a próxima semana! Daí a curiosidade ainda possível no começo do nosso século. Não se encontravam sinopses tão facilmente na internet. O texto da imortal Ana Maria Machado estava guardado comigo, seu fiel sacerdote. E a Kamilla? Qual a sua relação com a bisavó Beatriz e com a bisavó Isabel? Querem mesmo saber? Aguardem até o próximo texto!

Texto intrometido para atrapalhar a história inspirada pela musa Camila e deixar com ansiedade quem lê: o ingrediente perfeito forjado na oficina de crueldade nossa de cada dia.

Nosso assunto desse bimestre é o Classicismo. Nosso autor será Camões. Cada grupo deverá escolher um dos cantos do poema épico português e apresentá-lo à turma de forma criativa. Não preciso nem dizer que esse doido deixou a turma apavorada! Mas ele era realmente doido. Pior; transformava seus alunos em doidos às vezes piores. Libertava a maluquice abafada pelas leis e orientações dos especialistas em ensinar o que nunca fizeram: entrar numa sala de aula de verdade, com alunos de verdade, inseridos num contexto social plural.

Tivemos que ir além do Bojador, enfrentar gigantes e, com Boa Esperança, chegamos ao nosso dia da apresentação do Seminário Classicismo em Camões. Houve de tudo! Tudo de bom! A maioria falou da sua experiência de leitura, outros mostraram sinopses pesquisadas em livros. Os gêmeos com nomes de profetas musicaram o canto I. O professor não sabia se aplaudia ou se secava os olhos de emoção. Hoje os dois têm uma banda de rock junto com o irmão caçula, que não era da turma.

Esse foi um dos sucessos dessa moçada linda! Nas aulas, surgiam ilustrações das narrativas ou de conceitos da literatura. Havia encenação de trechos de obras consagradas. Liam-se também os gibis e jornais da época. Tudo era pretexto para a ensinar e aprender se divertindo. Era uma turma muito linda mesmo. A Kamilla não estava lá. Chegaria mais tarde numa das reedições oficiosas de projetos de Literatura para o Ensino Fundamental.

Professor, você ficará com as quintas séries, pois não conseguimos quantitativo para o Ensino Médio à tarde. Era o ano do Ensino Fundamental. Em todos lugares só havia turmas desse seguimento.  Adeus Dom Dinis, Gil Vicente, Camões, Gregório de Matos, Castro Alves… Olá, Ziraldo! Olá, Sylvia Orthof! Boa tarde, Tatiana Belinky! Que bom que vocês estão aqui para me salvar! E, a cada dia, uma desses mestres da literatura nacional aparecia diante da turma. Chegou a vez da Srª Ana Maria Machado.

Momento de banimento da história intrometida atrapalhadora da narrativa principal para a terra dos textos inacabados donde só emergirá no momento certo de aparecer com autonomia.

Estavam todos empolgados com a leitura de Bisa Bia, Bisa Bel, de Ana Maria Machado, quando, de repente, a Kamilla (com K e duplo LL) gritou:

– Aaaaah! Que droga!

– Professor, eu juro que não fiz nada!

– É verdade, professor! Ele estava quietinho ouvindo a história. Foi a Kamilla que gritou sem ninguém mexer com ela.

Independente da palavra sensata da aluna em defesa do colega inocente, mas coroado da má fama de implicante, eu já percebera que ninguém havia se dirigido à Kamilla. Ela gritou sozinha. Tranquilizei o menino sapeca assustado e experimentando dos encantos da narrativa duma imortal.

A menina comportada não me surpreendeu na atitude. Ela era realmente muito educada, estudiosa e justa na sua meninice. Aliás, todos eram crianças com cara e comportamento de criança independente da estatura.

Perguntei à menina o porquê daquele comportamento. Ela respondeu indignada:

– Eu odeio essa mulher!

– Que mulher, Kamilla?

– Essa que escreveu o livro.

– Você não está gostando da história?

– Ela está gozando da minha cara! Tá pensando o quê? Essa menina que ela inventou nesse quarto bonito, conversando com a vó dela… Aí! Que raiva!

Nesse momento, toda a turma permaneceu em silêncio e eu pedi a Deus que me iluminasse. Também estava chocado. Não tivemos um quarto decorado na infância, não conhecemos nossas bisavós perdemos nosso avô materno antes do meu irmão mais novo nascer e quase não convivemos com nosso avô paterno, mas nunca me senti do jeito que a Kamilla se sentiu. Eu disse para ela que a Srª Ana Maria Machado não a conhecia e nem a nenhum dos seus colegas. Ela criou essa história porque era importante para ela falar sobre a memória que as fotografias trazem, falar dos costumes de uma época etc etc. Tenho certeza jamais iria escrever algo para te ferir. Meu argumento fez com que ela parasse de gritar, mas eu ainda via a inquietação nos seus olhos.

– Você quer dar uma volta no pátio, beber uma água e voltar quando estiver se sentindo bem?

– Eu vou sair, mas não vou voltar.

– A sala é sua Kamilla. Não quero que você vá embora. Quero que você se acalme e volte.

– Tá bom, professor, eu vou lá fora. Mas o senhor vai me deixar entrar de volta sem chamar minha mãe?

– Sim, eu prometo.

Nesse ínterim, a inspetora veio até a porta, sempre muito respeitosa, perguntar o que houve. Disse a ela que não levasse a menina até a diretora. Eu a liberei naquele dia para ficar no pátio e depois iria ao gabinete conversar pessoalmente com a chefe sobre o ocorrido.

Resumo: Kamilla não estava suportando lidar com a diferença entre a vida estabilizada da Isabel da ficção com a sua vida muito sofrida e que eu não ouso registrar aqui por uma questão de respeito a privacidade na minha ex-aluna transformada em personagem. Na época, era menor de idade. Tenho de respeitar o Estatuto. Ela continua uma menina na minha mente mesmo já sendo adulta caso esteja ainda entre nós. Um ou dois anos depois do ocorrido, a encontrei no ponto de ônibus perto do colégio. Eu a cumprimentei chamando-a pelo nome. Ela disse:

– Professor, o senhor lembra do meu nome!

– Claro! Eu não me esqueci de você. Apareça na minha turma para uma visita.

– Eu posso? – perguntou com o olhar de quem diz “mesmo depois de todo o trabalho que eu te dei?”

– Sim! Estou esperando por você.

A menina sorriu como nunca havia feito antes. E esse sorriso me enterneceu e fortaleceu. Senti-me no caminho certo.

Ela nunca mais voltou à minha sala. Não soube mais dela. Talvez seja o motivo dela não ter batido a minha porta. Não estou na sala de aula agora. Não trabalho mais naquele colégio, embora o carregue comigo para todo o lado. Ela não era a Camila da mitologia e nem era grega. Era uma menina brasileira com problemas sociais graves, mas mudou a minha vida e me levou a querer escrever sobre o meu cotidiano no magistério. A partir da sua reação, cessou tudo o que fora dito antes, pois um novo valor em minha vida se levantou.

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