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Suplemento Araçá – Vol.02 – nº03 – Set./2022 – Artigos & Ensaios – “Ailton Krenak, um intelectual além dos trópicos” – Lívia Penedo Jacob

ISSN: 2764.3751

Ailton Krenak, um intelectual além dos trópicos
Lívia Penedo Jacob[1]

Sandálias, bandana e miçangas: definitivamente, ele não usa black-tie. A simplicidade com que Ailton Krenak costuma se apresentar contrasta com uma imagem imortalizada pela TV Câmara, quando, em 1987, o então jovem indígena manifestou sua indignação contra os constituintes e a imprensa nacional. Na ocasião, trajando terno branco e gravata (bem à “moda” congressista), Ailton pintou o rosto com jenipapo, enquanto proferia um potente discurso em prol dos direitos indígenas. Memória de uma luta maior, cuja participação de vários povos e lideranças foi essencial para mudar o curso da história, hoje aquele gesto tem sido interpretado como misto de ato político e performance artística. Viés amarrado à noção ocidental de que o intelecto prescinde de uma corporeidade ou se reduz ao corpo da palavra escrita.

Nesse sentido, não deixa de ser uma ironia (ou quiçá uma superação) que Ailton Krenak tenha sido o último vencedor do prêmio Juca Pato[2], honraria concedida desde 1962 pela União Brasileira de Escritores aos maiores pensadores do país. Afinal, o conceito do que vem a ser um intelectual está bastante atrelado à cultura ocidental do século XIX: pessoa que se destaca por sua habilidade em desenvolver uma escrita crítica, teórica ou criativa. Trata-se, aliás, de uma evolução da concepção de “beletrista”, ou “homem de letras”, como se denominava, entre os séculos XVII e XVIII, a pequena elite europeia alfabetizada. Foi Gramsci quem rompeu formalmente com a ideia de que o pensamento refinado e transformador não poderia brotar do seio popular. O filósofo marxista propôs, em oposição ao “intelectual tradicional”, a existência do “intelectual orgânico”, sujeito periférico que se mantém ligado à sua classe social junto a qual atua como porta-voz. Surgia, enfim, a consciência de que a política, a filosofia, a literatura, a sociologia e todas as demais expressões do pensamento humano transcendem a escrita porque anteriores a ela.

O marxismo, contudo, não deu conta de apresentar soluções universalizantes para os abismos sociais do mundo, como também a psicanálise freudiana se mostrou incapaz de ler totens e tabus indígenas sem as costumeiras bengalas europeias. Perspectivas que, apesar da intenção de salvaguardar os povos originários, não frearam o apagamento deliberado das culturas não assimiladas pelo Ocidente, processo cunhado de “epistemicídio” por Boaventura de Sousa Santos. Surpreendentemente, o “pensamento selvagem” resistiu e hoje nos convida a repensar a noção de brasilidade difundida por intérpretes de outrora, tais como Sílvio Romero (1851-1914), Euclides da Cunha (1866-1909), Gilberto Freyre (1900-1987), Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), Caio Prado Jr (1907-1990), entre outros. Percepções que demonstraram menor preocupação com os brasileiros desprovidos do Brasil, pessoas originárias da terra, que vivem às margens da própria língua portuguesa e cuja memória se calca mais na oralidade do que nos livros.

É o caso de Ailton Krenak, alfabetizado depois de adulto, fato para o qual não costuma dar muita importância, já que considera ler e escrever uma técnica, nem melhor nem pior do que nadar, caçar, subir em árvores ou operar máquinas. Sua língua materna, o borun, é ágrafa e corre o risco de desaparecer, engolida pela influência colonizadora do português. Por isso mesmo, a força de Ailton está na fala: muitas de suas obras recentes, alçadas a bestsellers, são transcrições de entrevistas e conferências, a exemplo de Ideias para adiar o fim do mundo, indicado ao prêmio jabuti em 2021 (na categoria “Ciências Humanas”). Conhecer o autor a fundo requer, portanto, muito mais do que a simples leitura das publicações que assina. É preciso, sobretudo, acompanhar sua trajetória por meio do vasto material multimídia disponível na internet e, se possível, vê-lo palestrar pessoalmente. Afinal, na presença reside o poder da corporeidade, a força misteriosa que nos leva a interpretar como arte certos gestos de fala.

Essa potência elocutiva (chamemos assim) levou Krenak para outros mundos, velhos e novos. Ele já esteve nos Estados Unidos, Europa, Japão, além de ter caminhado por vários países da América Latina, fronteiras que julga inexistentes, já que os trópicos – alegres ou tristes – foram imaginados pelos colonizadores. Sob a ótica indígena, há apenas o universo, onde paira um planeta azul em colapso. A preocupação dos povos originários em conservar as florestas ganhou novo significado em um mundo paralisado por uma pandemia cujas origens e consequências estão atreladas ao modo de produção capitalista. Vozes outrora ignoradas passam a ser ouvidas, nos remetendo à canção “Índio” de Caetano Veloso: a surpresa da revelação está na obviedade de uma verdade não percebida.

O reconhecimento tardio da sabedoria indígena não se operou com tanto atraso junto à consciência popular como se dá entre as elites. Para as camadas mais iletradas que durante anos se graduaram nos terreiros de umbanda, por exemplo, os Caboclos e Caboclas da Mata Virgem sobreviveram como guardiões e testemunhos de antigas tradições de povos originários do litoral nordestino, dos quais mães, pais e filhos de santo também descendem. Já no discurso dos intelectuais (“tradicionais”, nos dizeres gramscianos), salvo raras exceções, o índio foi mais visto como o “outro” do que como “nós”. A “caboquice” (como se chama no Norte do país tanto o mestiço como o sujeito interiorano) sempre nos preocupou enquanto explicação possível para o desplazamiento brasileiro entre a vizinhança da colônia hispânica, bem como por vezes justifica o desprezo que recebemos dos “verdadeiros civilizados”, brancos não-miscigenados, laureados com os Nobel, Pullitzer, Oscar, Grammy com muito mais frequência que qualquer outra gente.

Quando o teórico da literatura Luiz Costa Lima afirmou, em simpósio ocorrido na Alemanha em 2015, que pertencer a uma área periférica estando subordinado a uma língua de circulação bem menor significa confrontar-se com a desconfiança e o preconceito dos acadêmicos metropolitanos, ele lavou a alma de todos os brasileiros. Falou o óbvio que permanece oculto à mentalidade mainstream, seja por ignorância, hipocrisia ou comodismo, não sabemos bem. Talvez devido à sua condição periférica entre os periféricos, a postura genuína de Ailton Krenak aponta um novo caminho para a intelectualidade brasileira. O pensamento indígena, enfim reconhecido, ajuda o Brasil a prestar suas contas consigo mesmo, além de abrir as janelas para um mundo desfronteirizado.  Sem preocupações demasiadas com aqueles que nunca verão “o lixo ocidental”, sobra tempo para contemplarmos as riquezas mais profundas da nossa terra e entendermos, enfim, onde moram os nossos privilégios.

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REFERÊNCIAS:

OBRAS LITERÁRIAS:

COHN, Sérgio (org). Ailton Krenak – Encontros. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2015.

COSTA LIMA, Luiz. Mímesis e arredores. Curitiba: Editora CRV, 2017.

KRENAK, Ailton. O amanhã não está à venda. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, M.P.  Epistemologias do Sul. Coimbra: Editora Almedina, 2009.

OBRAS MUSICAIS:

VELOSO, Caetano. “Um índio” (Caetano Veloso). Álbum Bicho. Philips Records, 1977.

NASCIMENTO, Milton. “Para Lennon e McCartney” (Fernando Brant/ Lô Borges/ Marcio Borges). Álbum: Milton. EMI Music Brasil. 1970.

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[1] Doutora em Teoria da Literatura e Literatura Comparada (UERJ) e mestra em Linguística (Puc-Rio).

[2] A última edição do prêmio foi concedida em novembro de 2021.

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