Valdeci Santana

Wolf. O cão dos nazistas.

 

Eu o via todos os dias. Fosse através das pequenas janelas gradeadas, durante sua ronda habitual ao redor dos blocos, ou, no denso nevoeiro das manhãs, quando perfilados aguardávamos a contagem dos prisioneiros. Aquele imponente pastor alemão, era o cão mais temido do campo de concentração de Auschiwtiz. Talvez de toda a Alemanha. Uma fera adestrada pelos nazistas para servir ao propósito de capturar fugitivos, torturar prisioneiros e até esquartejar, caso fosse ordenado. Seus olhos eram sombrios iguais aos dos soldados que o encoleiravam. Uma máquina criada para a guerra. Os alemães o chamavam de Wolf, Lobo, o que era uma evidente homenagem ao Führer Adolf Hitler que, tanto admirava os lobos que gostava de ser chamado por este apelido. Mas, para nós prisioneiros, ele era o Potwór, monstro em polonês. Um monstro gigante sobre quatro patas. Tantas lendas foram levantadas sobre aquele cão, que receio ter sido mais um truque publicitário dos nazistas, para evitar tentativas de fuga, pois, caso fossem verídicas as histórias sobre as atrocidades cometidas pelo Lobo, restava-nos rezar para que a morte nos alcançasse antes daquele cão, com suas presas afiadas, reluzentes e seu temido histórico.

Eu trabalhava na cozinha e passava o dia todo descascando legumes. As cascas eu separava para a sopa dos prisioneiros e os legumes eram enviados para a cozinha nazista. E se ao menos uma imperfeição ou resto de casca fosse detectada numa batata, por exemplo, éramos severamente punidos. A cozinha também nos servia para um reduto de conspiração, onde arquitetávamos nossa fuga. Uma fuga aparentemente segura, não fosse uma questão a se considerar: Wolf.

Primeiro foram os burburinhos acerca da massa muscular do cão, que de uma hora para outra, definhou. Depois vieram as comemorações entre os prisioneiros, diante do completo abatimento do Lobo. Seu corpo todo se resumia a uma camada de uma rala pelagem castanha, cobrindo ossos frágeis. O aspecto enfermo do cão era digno de pena. O lobo estava derrotado. Os melhores veterinários nazistas foram chamados e nenhum encontrou outra solução senão sacrificá-lo. Decidiram então que brevemente lhe dariam uma morte digna de um oficial de alta patente, como todas as honrarias da praxe.

O inverno estava rigoroso e o canil de Auschwitz, já não oferecia a quentura necessária ao cão moribundo. O Lobo foi levado para a cozinha e alojado num cantinho próximo ao fogão. E adivinhe quem ficou encarregado de seus cuidados?

Foram dezenas de pedidos, quase clamores dos meus colegas prisioneiros, para que eu contribuísse e apressasse a morte daquele cão. E não digo que não refleti sobre esta hipótese algumas vezes. Mas, seu olhar triste de alguma forma afetava meu espirito, além do mais, sua morte era certa, não achei justo interferir em seu destino. Eu me via naqueles olhos. Olhos certos da morte e temorosos. E por vezes, eu simplesmente me sentava ao seu lado e enquanto lhe enfiava colheradas de sopa boca adentro, confidenciava meus temores em sussurros. Falei-lhe sobre tudo por longos dias, inclusive da fuga que eu arquitetava, enquanto corria os dedos em sua pelagem. Num dia, assim, sem mais nem menos, ele lambeu meu braço e esboçou algo próximo de um rosnado, quando agradeci com voz maternal, imitando o diálogo de uma mãe com seu bebê. Na ocasião eu debochei de sua patética tentativa de valentia.

A sopa não era milagrosa. Rala demais para ser sincero. E até hoje me pergunto qual foi o antidoto que realmente revigorou o cão? O fato é que alguns dias sob meus cuidados, o Lobo alemão reagiu e finalmente trouxe boas expectativas aos nazistas. Sua pelagem estava macia, seu olhar ganhou vida e sua calda abanava com maior frequência.

Fiquei incumbido quase que exclusivamente da recuperação do animal. Tanto que eu o usava como álibi, quando eu me atrasava para a contagem ou deixava de realizar alguma tarefa, e era imediatamente perdoado.  Os prisioneiros foram bastante hostis e acusaram-me de reanimar aquela fera, quando, na verdade, o que fiz foi lhe ofertar um pouco de sopa rala, calor corporal e longas conversas.

Um mês mais tarde, Wolf estava de volta ao seu posto com dedicada desenvoltura e eu, de volta aos legumes e ao sofrimento diário. Nossa separação causara-me dor! Mas, pertencíamos a mundos distantes.

Fugimos numa tarde de denso nevoeiro. E a neve que calculamos ser uma arma em nosso favor, tornara-se uma inimiga impetuosa. Desorientados, famintos, com sede e frio insuportável, vagamos em círculos através de uma floresta que parecia não ter fim. Meus companheiros foram tombando um a um. E quando o último deles morreu, eu já não tinha a menor duvida de que brevemente o seguiria.

Não sei se estava desmaiado ou apenas dormindo, mas, o fato é que sobressaltei, quando percebi o som de vozes. Eu estava debaixo de um abrigo térreo improvisado com galhos. Minha alma ficou gelada quando percebi os grandes olhos negros do Wolf, penetrado em meu corpo trêmulo. Seus dentes afiados a poucos centímetros do meu corpo. Como se uma sugestão repentina lhe ocorresse, ele suavizou a expressão, balançou a calda e saiu latindo em direção oposta, arrastando vozes dos soldados consigo. Eu estava fraco para agradecer-lhe, mas, comovido, deixei caírem as lagrimas.

Na mesma tarde, enquanto eu refletia minha atual situação, e tentava angariar energias para seguir com a fuga, ou, resignar-me a morrer ali mesmo, um novo sobressalto. Eu estava novamente diante do Lobo alemão. O cão mais temido de Auschiwtiz. Desta vez ele estava só e pendurado naquela boca grande, um pequeno esquilo que ele atirou em minha direção. Mais tarde, ele praticamente arrastou-me neve afora, até uma pequena choupana abandonada. E três dias mais tarde, estávamos longe o suficiente de tudo e pertos um do outro.  Ele claramente abdicou do único modo de vida que conhecera para seguir comigo.

Enterrei Wolf quase dez anos após nossa fuga. Não teve formalidades oficiais, medalhas ou chuva de tiro. Somente seu corpo velho e cansado deitando em seu merecido e eterno descanso. Uma morte simples, como exatamente foram seus últimos anos. Longe do campo de concentração, longe dos nazistas, bem distante dos cadáveres e longe da guerra.

fonte da imagem: https://www.pexels.com/pt-br/foto/pastor-alemao-adulto-preto-e-castanho-236622/

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Valdeci Santana

Escritor. Autor de 4 romances: "As palavras e o homem de bigode quadrado", "A prima Rosa", "Dia vermelho" e "O rei da Grécia" Palestrante, contista e apresentador no programa #Cultura Tv Batatais

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