16 horas de escritaValdeci Santana

E lá se foi meu carnaval

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E lá se foi meu carnaval.

Conheci Dadá num final de tarde de domingo, quando as entonações sombrias da noite, vão lentamente consumindo a claridade do dia. Foi numa roda de batuque entre os bambuzais do morro da Conceição. No terreiro de don’ Ana de Angola. Dadá, mulata faceira, de riso fácil, cujo corpo entumecido de óleo de palmeira, reluzia tal qual mármore negro. Majestosa na roda para a apreciação dos mortais, a rainha do carnaval carioca exibia braços enlaçados por pulseiras de latão, tal qual uma garça negra prestes a voar. Sua saia de chita bem cintada na cintura flexível sacudia em compasso com o pandeiro. As miçangas coloridas nas tranças de seus cabelos se assemelhavam a uma coroa de pâmpano, encimando o crânio daquela odalisca tropical. Cuias repletas de torresmo e farofa passavam de mão e mão. Também desfilava deliberada, a parati, cujo gole umedecia meus grossos lábios e afogueava minha alma ébria de desejo. A criadagem já se armava de um leve azedume no humor, cientes do regresso aos seus senhores. Enquanto os forros cultivavam o privilégio de tardarem no festejo.

Quando arrisquei gingar o corpo junto de Dadá, ela, contagiada pelo calor da folia, tratou de enlarguecer um hospitaleiro sorriso. Ao que eu, indeciso se puxava ou não conversa, venci a timidez e, num gesto estabanado tratei de uma apresentação:

—José Agripino! –Entoei em minha melhor voz, ao pé de seu ouvido, sem saber se meu nome lhe interessava.

Quando fui adicionar meu endereço na apresentação, ela, desinibida como só, tratou de revelar conhecer melhor os meus passos, do que minhas surradas sandálias nos pés rachados.

Meu espirito saltitou feito criança travessa, quando soube da musa do carnaval, que acompanhava meu desfile matutino, quando às primeiras cintilações do dia, eu descia o morro da Gamboa, trazendo nos ombros o barril repleto de excrementos de meus senhores, para desovar no mar.

Mudei o itinerário desde então, e tratei de passar diariamente defronte ao portão da casa onde Dadá servia. E em mútua troca de sorrisos íntimos e olhares afetuosos, estabelecemos nosso bem-querer.

O carnaval se avizinhava e ciente de que ela desfilaria pelos trapiches da pequena África, tracei um plano engenhoso, que visava aprisionar nossas almas numa só, numa liberdade que eu garantiria para nós.

Benedito, um tocador de berimbau conhecido meu. Negro forro entregador de leite, mostrou-se solicito ao aceitar o favor que eu lhe exigia, o de incluí-lo como cumplice nesta questão do coração. E isto foi minha tragédia, pois, genuíno apaixonado, não calculei a provável hipótese de que, tendo Benedito diário contato com minha Dadá, seria natural que o pobre também se enfeitiçasse.

Pouco faltava para somar ao dinheiro que eu ganhava, prestando serviços aos vizinhos desprovidos de escravos, e comprar não somente uma, mas, duas alforrias. Gastaria minha liberdade todinha ao lado de minha Dadá. Isso tudo expliquei num poema que lhe enviei por intermédio de Benedito, juntamente com um belo anel de prata que encontrei no cais.

Triste foi meu destino quando o batuque acendeu o carnaval. Vi minha graciosa garça negra voando nos braços de Benedito, entre longos beijos e melosas juras de amor. No dedo da mão pedida em matrimônio pelo traidor, reluzia a prata que mandei. Quem testemunhou o enlace entre os dois, jura que palavras mais belas jamais foram ditas, num poema feito todo para ela, coroado com um belo anel de prata.

E o Arlequim chorou na multidão, pois, minha graciosa colombina tropical sorria nos braços de outro.

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Valdeci Santana

Escritor. Autor de 4 romances: "As palavras e o homem de bigode quadrado", "A prima Rosa", "Dia vermelho" e "O rei da Grécia" Palestrante, contista e apresentador no programa #Cultura Tv Batatais

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