5ª edição – Conto: “Um apólogo ou o caso do espelho”
Um apólogo ou o caso do espelho
Era uma vez um espelho que não era meu. Não, realmente não era meu nem seu, tampouco pertencia a alguém. Não submetia certos caprichos a pessoa alguma. Descansava no canto, esperando à sombra, encostado no vão de um apartamento, encontrava-se abandonado. Mas soberbo, exatamente, dizia-se o objeto mais desejado do mundo. Todos buscavam a sua reflexão. Havia luzes em sua superfície, se houvesse luz de fato no interior do imóvel.
— Eu sou irresistível. Duvido haver cidadão que não me note quando adentra o recinto. Um brilhante e atraente espelho é o que sou. Irresistível, repito, reluzente. Estou certo que exerço fascínio onde me penduram.
Enquanto isso, uma colher de prata apoiada na borda da mesa assistia embasbacada à demonstração de egocentrismo, ou melhor, sentia-se curiosa e perplexa devido a tanta “metidez” do tal espelho altivo.
— Mas você é folgado, hein, senhor espelho. Metidão e besta. Folgadão.
Na parede ao lado, o relógio gigante marcava o compasso daquela cena. Tique e taque, anunciava o marcador. Tique e taque. Anos e anos de vaidade do senhor espelho sendo acompanhados todo dia ali, no interior do apartamento 204, no Bloco B. Tique e taque, barulho que seria incômodo, acaso houvesse algum morador insone. Cenário nítido melancólico, apartamento vazio já fazia muito tempo. Quem teria dado então corda no velho relógio? Tique e taque, não se sabe. Mistério. O pêndulo balançava. Só não consistia segredo para ninguém o motivo pelo qual os talheres não suportavam conviver com o espelho. Claro que não, a soberba daquele besta metido, que se achava o maioral, o mais refletido e querido, construiu inúmeras antipatias. Nariz empinado. Só porque fixaram moldura folheada a ouro nas bordas e camada de aço nobre a cobrir a retaguarda. Metido, isso sim, na opinião de todos.
O garfo e a faca também detestavam a falta de modéstia do velho e imponente espelho: “Se eu tivesse perna para andar até aí dava umas duas ou três espetadas em você, seu espelho velho e insuportável”, proferiu rancoroso o marido da colher.
A faca tentou contar vantagem: “eu também reflito, sabia, pessoal, olhem pra mim. Reflito bem, corretamente. Só olharem pra cá e pronto, a imagem se revela na lâmina. Já a colher, essa só faz refletir gente com cara gorda. Isso mesmo, como se não bastasse, ela torce e distorce a imagem dos outros. As caras refletem balofas, até magrelo se parece fofucho com sua atividade de retroflexão, queridíssima colher de sopa”, afirmou impropérios a faca irritada, porque estava quase cega e em vias de inutilidade. Porém, uma voz grave soou de repente:
— Parem com isso (ordenou o prato invocado). Vocês estão ficando iguais ao espelho velho e vaidoso. Cheios de empáfia. Precisam se unir, só assim aguentarão o passar do tempo.
Todos então concordaram, tique e taque, o desenrolar das horas seguia o rumo. Melhor seria ficarem unidos em pensamento, decidiram os utensílios: “Deixem o tal senhor ultrarreflexivo sozinho”, finalizou seguro o saca-rolhas, pois sabia que ninguém viveria isolado no mundo e abraçou embolado ao pano de copa. Tique e taque, o par de notas sonoras martelando o espaço invisível do apartamento. No meio da discussão, o relógio observava tudo ao redor, seguro, preciso, como se conhecesse o futuro e o próprio compasso cronológico figurasse prenúncio revelador. Tique e taque. Mistério no ar. Isso mesmo, uma novidade dali por diante mudaria toda a história da família de utensílios domésticos. Não era só o tique e taque se aproximando, claro que não. Algo alteraria o curso das coisas e, de repente, surgiu um toque e toque dissonante. Verdade, incrível, quase uma década sem mudança alguma de tom e naquele momento foi diferente. Toque e toque, ruído grosso e macio ao mesmo tempo. Sinestesia. O tique taque se misturou ao toque e toque do salto do sapato da nova moradora — e então o giro de chave na fechadura enferrujada fez soar o tilinque tilinque onomatopaico mais desajustado do mundo.
Moral da história, a nova compradora adorou os talheres de prata. Mandou polir todos eles e os usou com gosto. Sobre o tal espelho convencido? Bem, dizem que a dona mandou retirar a camada de aço responsável por fazê-lo refletir. Rasparam-lhe a película de metal que tanto o tornava objeto especial. Ao fim e ao cabo, o destino fez dele um velho vidro inútil, transparente e desanimado, sem serventia. O ex-espelho metido nunca mais refletiu na vida. Sem a companhia do aço, sua imagem era nada, totalmente invisível dos outros e carente de eufemismos.
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Sobre o autor:
A mesmice e a previsibilidade cotidiana estão na contramão do prazer de viver. Acredito que a rotina do homem moderno é a causadora do tédio. Por isso, sugiro que façamos algo novo sempre que pudermos: é bom surpreendermos alguém ou até presentearmos a nós mesmos com a atitude inesperada da leitura descompromissada. Importa (ao meu ver) sentirmos o gosto de “ser”; pormos uma pitadinha de sabor literário no tempero da nossa existência. Que tal uma poesia, um conto ou um romance? É esse o meu propósito, o saber por meio do sabor de que a literatura é capaz proporcionar. Como professor, escritor e palestrante tenho me dedicado a divulgar a cultura e a arte. Sou Mestre em Letras pela Faculdade de Formação de Professores da UERJ e componho para a Revista Entre Poetas e Poesias — e cujo objetivo é disseminar a arte pelo Brasil. Escrevo para o Jornal Daki: a notícia que interessa, sob a proposta de resgatar a memória da cidade sob a forma de crônicas literárias recheadas de aspectos poéticos. Além disso, tenho me dedicado com afinco a palestrar nas escolas e eventos culturais sobre o meu livro Panapaná: contos sombrios e o livro Cambada: crônicas de papa-goiabas, cujos textos buscam recontar o passado recente de forma quase fabular, valendo-me da ótica do entretenimento ficcional. Mergulhe no universo da leitura, leia as muitas histórias curiosas e divertidas escritas especialmente para você. Para quem queira entrar em contato comigo: ergalharti@hotmail.com e site: https://escritorerick.weebly.com/ ou meu celular\whatsapp: 98571-9114.
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Reviver Machado de Assis num contexto diferente, mais igualmente agradável a mim. Em realidade, tanto o texto machadiano quanto o texto de Erick Bernardes deixam uma coisa clara para mim: o poder relativo e o poder absoluto. No conto do bruxo do Cosme Velho, a Baronesa representava o poder absoluto, revelador da verdadeira importância que se pode ter na sociedade. No conto do escritor gonçalense, a nova proprietária do imóvel exerce o papel de membro da pequena burguesia duma cidade. Mais uma vez, as cartas firam dadas por quem realmente detém o poder. Os demais, independente de suas características e valores tiveram seus destinos traçados ao Bel sabor da vontade de quem pode escolher, eleger, premiar ou lançar no limbo do esquecimento.
Um excelente texto, como sempre.