Carina Lessa

Luto

Sobre o que conversar? O porão parece cheio de insetos como sempre. Alguns vasos enferrujados latejam resistindo a uma espécie de trombose inevitável. Os escravos estão remoendo os próprios ossos e você não sabe o que fazer. Olha o próprio corpo. Receio realmente que as pessoas estejam lendo pouco, quase nada. Só querem falar.

Deixem que vos falem as espécies! Ouço uma voz funda no abismo.

Vem-me as carcaças dos mamíferos de porte grande presentes nos museus, tenho de reinventá-los. A lembrança que tenho é da minha própria cidade, onde flâneur quase fui atropelada tantas vezes. Hoje, virei uma viajante do ar. Transporto-me e sou o próprio elefante que já morreu. Tenho nas mãos o marfim quase todo destruído pelo incêndio do Museu Nacional que um dia visitei. Não sou um navegante. O meu corpo passa escondido em moléculas neutras, constituídas por dois átomos. Ligações coordenadas. Composto complexo e compartilhado. Posicionam-se diferentes de modo que possa estabilizar a relação espaço-temporal. Não aceito.

Volto ao museu, no silêncio de quem não precisa falar, e observo a pirâmide. O marfim estala queimadura entre os dedos, atiça o corante na pele amorfa.

Penso nos deslocamentos e nas necessidades de sobrevivência das espécies. Resolvo-me massa por um segundo e encontro os “hipopótamos de cocaína”. Fico pesado. Aumenta a pressão sanguínea e me preocupo com o s possíveis coágulos. Os batimentos estão acelerados com picos intensos de energia. Alguns efeitos são irreversíveis.

Os protestos se tornaram violentos e as cidades, sucateadas. Sem renda básica, o bloqueio das estradas se torna inevitável. A saúde das palavras requisita reforma há muito tempo. Os direitos humanos são a carne da palavra e eles se tornaram cinzas todos os dias, as mãos ficaram sem digitais (o marfim me dissera).

Os hipopótamos de Escobar precisam se realocar. Prevejo a matança e a carne estraçalhada. O clima, aparentemente acolhedor, diminui a capacidade de sobrevivência de outras espécies, efeito do deslocamento. Dizem os cientistas que eles afetam o ecossistema local e que alteram, inclusive, a composição química da água.

Diante do impacto, os seres se digladiam. É preferível exterminar. Nenhum projeto de conservação, o importante é controlar o crescimento populacional enquanto a natureza simplesmente segue o curso da reprodução.

O mesmo povo que vai às ruas, reivindicando qualidade mínima sanitária, é capaz de medidas virulentas. Quando o assunto é hipopótamo, só enxergam a palavra “invasor”. É preferível então falar de flores ou de criaturas menores, supostamente incapazes de se deslocar. A cocaína é do Pablo, os gigantes, dos bichos sobreviventes de uma África que avança pela América do Sul.

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Carina Lessa

É ficcionista, poeta, ensaísta e crítica literária. É graduada em Letras, mestre e doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ. Atua como professora de graduação e pós-graduação nos cursos de Letras e Pedagogia da Unesa. É membro da Associação de Linguística Aplicada do Brasil e da ABRALIC.

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